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O vagabundo, Georg Grosz (1893-1959) |
A ideia bíblica de herança é muito mais ampla do que o seu sentido na nossa língua. Designa a posse de um bem a título estável e permanente, mas não de qualquer bem, somente aqueles que permitem ao homem e à sua família desenvolverem suas potencialidades sem dependência de outras pessoas. Isso, para uma civilização agrícola, consistia em um mínimo de terras e de gado. É a partir desta experiência que a Bíblia exprime o aspecto fundamental dos dons que Deus concede ao homem. Desde o princípio, a herança estava ligada à aliança. A existência e a sobrevivência do povo de Israel era por si só uma herança de Deus. Era firmada sobre um princípio simples: Sereis meu povo e eu serei vosso Deus. Isso simplesmente fazia com que Israel passasse da esfera do profano, em que se encontravam os outros povos, para o mundo de Deus.
Estendia-se também na terra prometida, pois esta era uma herança de Deus a Abraão e à sua linhagem. Naturalmente os herdeiros de Abrão herdariam mais do que suas posses, herdariam também as suas promessas. Contudo, se observarmos o caso específico de Canaã, veremos que esta terra não foi prometida por herança a ele, e sim aos seus descendentes que, na mesma medida que o próprio Abraão, se mostrassem dignos de possuí-la. A terra prometida se confirmaria como herança a Israel, mas seria uma possessão de terras, como era comum aos povos vizinhos, pois a terra, de fato, continuaria pertencendo a Deus, que escolheu estabelecer no meio daquele povo a sua residência, tornando aquela terra santa, pela sua presença. O sentido mais profundo da divisão de terras pode ser encontrado no mandamento do Ano Jubileu, época propícia para que a terra seja redistribuída, conforme a necessidade de cada clã ou família. A terra pode ser vendida, mas a herança permaneceria, pois Israel era estrangeiro e hóspede nesta terra, quando muito meeiro de Deus. A terra era para Israel viver e progredir, mas não para possuir.
Este modo com que a herança era considerada fez o povo refletir quando a terra prometida, sua maior herança, caiu nas mãos de pagãos. Ainda que amargurados pelas perdas, se viram na condição de amargarem também a derrota, pois a tragédia se deu pelo seu descumprimento da aliança, e não por uma quebra da promessa de Deus. A noção de resto também deriva daí, pois só este resto gozará dos benefícios da terra prometida, e somente este resto gozará de eterna felicidade. Este foi a grande estimulador de esperança do povo no exílio, pois mantinha acesa a promessa para os justos. O que antes fora entendido como uma promessa para todo Israel, o domínio sobre todas as nações até a extremidade da terra, é relido como no exílio como uma esperança messiânica: Proclamarei o decreto do Senhor: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. (Sl 2.7s)
Quer seja a herança da terra ou o domínio sobre as nações, esta esperança escatológica não vai além da perspectiva terrestre, o que munia de muitos argumentos os adeptos da doutrina da retribuição, que visavam os bens terrenos, que tinham como base a prosperidade individual, como o auge das promessas de Deus. Aos que não fossem beneficiados com estas bênçãos, restava-lhes a retribuição no além túmulo, que promoveria uma total inversão na ordem social. Coisa que os saduceus, donos do poder, abominavam. Se já era difícil manter-se na esperança em um país distante, longe da terra prometida, e, consequentemente, longe das promessas de Deus, colocar-se no pós morte como herdeiro por justiça, era mais complicado ainda. Era preciso um empenho redobrado dos profetas para manter viva a esperança, pois juntamente com a necessidade de não se contaminar com as práticas dos povos pagãos e de não constituírem família com eles, mantendo-se puros até a consumação dos tempos: Tu, porém, segue o teu caminho até ao fim; pois descansarás e, ao fim dos dias, te levantarás para receber a tua herança. (Dn 12.13)
Foi dada também a Israel, particularmente à tribo de Levi, outro
tipo de herança. Uma vez que esta tribo não foi beneficiada na divisão de
terras quando aconteceu a ocupação de Canaã pelos hebreus, a herança sacerdotal
foi designada a ela. Porém, algumas cidades foram reservadas exclusivamente
para eles, cidades onde somente os membros dessa tribo poderiam possuir
propriedades. Mas o que nos interessa no momento é a herança espiritual herdada
por eles, e ela ficou estabelecida nestes moldes: já que os levitas não
receberam herança material, o próprio Deus seria a sua herança. O que começou
com humildes sacerdotes que se contentavam com parte dos dízimos que eram
oferecidos a Deus em cerimônias que somente eles poderiam presidir, culminou,
após a construção do templo, na ascensão ao cargo de maior poder no meio do
povo judeu. Os profetas foram veementes em denunciá-los, visto que a classe
sacerdotal, que foi criada para dividir a riqueza que era ofertada a Deus, e
que tinha o propósito de socorrer o necessitado, estava engordando uma herança
material que não lhe era devida, enquanto que a sua verdadeira herança, a
espiritual, estava sendo negligenciada. Nas duas vezes em que o templo de
Jerusalém foi destruído, essa era a situação vigente.
Com a conquista do país pelos invasores babilônicos, o povo,
que se viu privado da sua herança material, é intimado pela pregação profética
a assumir Deus como sua única herança: A
minha porção é o Senhor diz a minha alma; portanto, esperarei nele. (Lm
3.24) É a partir daí que a noção de herança se espiritualiza completamente.
Quando os salmos repetem que Deus é a parte do povo, compreende-se uma herança
interior que já não faz parte de uma recompensa pela fidelidade à aliança, mas
sim decorrente da alegria de se ter Deus no coração e de guardar os seus
mandamentos simplesmente porque é bom fazê-lo: Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti. (Sl
119.11) A velha fórmula de possuir terra vai se tornando cada vez mais
esperança de morar numa terra de felicidade perfeita. Ter Deus no coração
antecipa de alguma forma esta felicidade.
Uma vez que as promessas de Deus se consumaram em Jesus,
toda a ideia de herança precisa ser revista. Jesus não herdou essas promessas
pela sua condição de Filho de Deus, mas sim pela sua obra expiatória na cruz. A
entrega de si mesmo revelou qual era o obstáculo para o cumprimento das antigas
promessas, o estado de escravidão em que se encontravam os homens, e o preço
que deveria ser pago pela sua libertação. Na cruz Jesus nos fez passar de
escravos vendidos ao pecado, para a condição de filhos e coerdeiros da herança.
Uma herança que se materializa aqui, e que se estende até o além. Os crentes em
Cristo são os novos herdeiros dos patriarcas, visto que a herança consanguínea
nada vale diante da herança da fé. Contudo, eles estão cientes de que não há
mérito nesta herança, ela é conferida pela graça de Deus.
A herança dos santos não mais se traduz em conforto
material, pelo contrário. Abrindo-se mão deles é que se alcança a plenitude: Iluminados os olhos do vosso coração, para
saberdes qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza da glória da sua
herança nos santos e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que
cremos. (Ef 1.18s) Herança dos santos, vida eterna ou salvação são nomes
dados ao caráter transcendente da herança das promessas realizadas no Gênesis,
que à luz dos evangelhos é a participação na vida de Cristo ressuscitado. O que
agora vemos obscuramente, veremos face a face. O que conhecemos em parte, conheceremos
plenamente. Não mais uma terra, não mais uma língua, não mais um povo, mas a
herança de todo um Reino, onde Deus não será apenas uma lembrança ou um
vislumbre, mas será plenamente tudo em todos.
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