Felizes os pobres (de espírito)

Bem aventurados os pobres (de espírito), pois deles é o Reino dos Céus (de Deus).
Para melhor compreensão desta unidade recomendamos que se faça as leituras paralelas de Mt 5.1-12 e Lc 6.20-28
Sermão do Monte, vitral da Igreja Marble, Nova York
A primeira bem aventurança, ou o primeiro mandamento, assim a chamamos se quisermos fazer de Jesus um novo Moisés, que é como Mateus tentou retratá-lo, fala da pobreza ou falta de recursos. O que não fica bem claro logo de saída é que tipo de recursos são estes. Na lógica de Lucas a riqueza é iminentemente material, fala dos realmente miseráveis sem recurso para sobrevivência, e esta é considerada pelos estudiosos a mais fiel tradução das palavras de Jesus ditas naquela montanha. No entanto, está longe de ser a interpretação mais bem definida como válida na cabeça da esmagadora maioria dos cristãos. A tendência a uma espiritualização, melhor dizendo, a uma interpretação que transcende as coisas do mundo visível e da realidade material é uma constante que pode ser observada não somente neste, mas em vários outros textos bíblicos. Preferimos achar que a Bíblia fala sempre mais do transcendente do que do imanente, quando na verdade ela junta os dois sentidos para nos dar a realidade do transparente.

Deixando um pouco de lado Lucas e sua radical interpretação, vamos tentar imaginar o que Mateus quis nos dizer quando acrescentou tô pnêumati, no espírito, ao termo grego ptochoí, que significa pobre de recursos materiais. Claramente Mateus quis ir além de do que simplesmente incluir somente os miseráveis do seu tempo, os judeus que haviam sido expulsos de Jerusalém quando esta foi invadida e destruída pelas legiões de Cesar, e que depois de dez anos ainda amargavam o sabor desta derrota fragorosa nacional. É bem provável que na comunidade para a qual Mateus dirige o seu evangelho o sentimento de pobreza tivesse um significado mais amplo e profundo do que a falta de recursos materiais, porque juntamente com estes recursos, os judeus perderam também a sua maior referência religiosa, que era o Templo construído por Herodes. Não querendo ser reacionário, contudo, olhando por este aspecto, este tipo de pobreza pode infligir à alma uma dor tão grande quanto à pobreza financeira. Não canso de repetir as palavras de Don Helder Camara, que sempre que colocado em cheque sobre qual era o público alvo da sua mensagem revolucionária, se pobres ou ricos, dizia que eram ambos, pois “ninguém é tão pobre que não possa dar, e ninguém é tão rico que não possa receber”.

Mas ainda assim a interpretação de Mateus dá muita margem à radicalização do evangelho de Lucas. Temos que nos lembrar que os judeus dos anos 80 da nossa era, que é quando muito provavelmente foi escrito este evangelho, viviam em uma sociedade teocrática, onde o governo, em última estância, era de Deus. Sendo Deus a origem e a determinação dos poderes de todas as ordens, inclusive, é claro, a social, os pobres de seu Espírito era justamente aqueles menos afortunados materialmente, os doentes, os publicanos, as prostitutas e os marcados por alguma deficiência física. Os ricos do Espírito de Deus seriam justamente o polo oposto, ou seja, aqueles que possuíam bênçãos materiais, gozavam de perfeita saúde e era fisicamente imaculados. Este fato é suficientemente bastante para nos assegurar de que mesmo que Jesus estivera falando para uma comunidade diferente da de Mateus ou Lucas, e ainda que a comunidade reunida na montanha ouvisse esta mensagem cinquenta anos antes que Lucas e Mateus a escrevessem, as bem aventuranças eram uma recompensa vitalícia pela indignação contra um mundo injusto que propiciava este tipo de desnível social. Soava na época como um fôlego de resistência contra a opressão que o povo sofria por parte dos romanos e por parte da aristocracia judaica, que por ter estado sempre ao lado do opressor, não sofrera qualquer perda quando da queda de Jerusalém. Pelo contrário, e bem provável que tivesse ficado ainda mais rica e influente. Era contra esses que Jesus propunha resistência. Cabe a nós identificarmos tanto dentro quanto fora da igreja que forças são essas e de que modo elas estão operando hoje, de modo a fazer pobres de todas as ordens e miseráveis em todas as classes.

Não podemos nos esquecer também de que Jesus não somente prometeu-lhes o ingresso no Reino dos Céus como também disse que este Reino era daqueles que assim viviam. Pois, pode-se muito bem viver no Reino de Deus sem posse material alguma. Pode-se muito bem viver no Reino de Deus com alguma riqueza. Mas nunca alguém poderá vislumbrar a maravilha que é este Reino ligado de alguma forma às forças que lhes são contrárias, as forças que produzem a pobreza, quer seja ela material ou espiritual.

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