Felizes os mansos

Bem aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
Sermão da montanha, Cosimo Rosselli (1439-1507)
Para melhor compreensão desta unidade recomendamos que se faça as leituras paralelas de Mt 5.1-12 e Lc 6.20-28

Muito embora esta seja uma bem aventurança citada apenas por Mateus nos evangelhos, e que faz dela a sua terceira bem aventurança, ela está longe de lhe ser exclusiva. Há muito tempo atrás, o autor do salmo 37 já nos havia antecipado um futuro semelhante para as pessoas possuidoras deste atributo. Diz o salmo no seu versículo 11: Mas os mansos herdarão a terra e se deleitarão na abundância de paz. Mas antes de entrarmos no verdadeiro sentido destas palavras, é importante que saibamos que ela, apesar de se referir a uma qualidade que faz com que as pessoas que a possuem sejam notoriamente bem recebidas e bem quistas, ela aparece apenas três vezes no Segundo Testamento. A primeira, neste mesmo evangelho, em 11.29, quando Jesus exalta esta qualidade em si mesmo e nos conclama a aprendermos a ser mansos como ele também o é: Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. A segunda vem nas palavras de Pedro que na sua primeira carta, no capítulo 3, verso 4, declara: Seja, porém, o homem interior do coração, unido ao incorruptível trajo de um espírito manso e tranquilo, que é de grande valor diante de Deus.

Vê-se logo de saída que o contexto de Pedro se apresenta totalmente diferente dos demais, porque aqui ele não está enumerando virtudes louváveis, e sim posturas imutáveis que necessariamente tem que ter todo aquele que se diz cristão. Por conta disso, é no contexto do salmo 37 e nas palavras de Jesus no capítulo 11 de Mateus que vamos encontrar o sentido mais apropriado e fiel para entendermos esta bem aventurança. Ambos os casos fazem referência aos mansos como pessoas que estão sob forte pressão da impiedade e da injustiça. O texto dos salmos chega ao requinte de expor situações tão dramáticas que estão fazendo os justos titubearem quanto à validade de se ter caráter, quando a realidade mostra que o ímpio prospera e vive tranquilo. Toda a preocupação do salmista está voltada para que o povo se mantenha fiel, pois aquela não era uma situação definitiva. A transitoriedade da injustiça logo se manifestará através de uma intervenção de Deus, que de forma alguma está alheio aos acontecimentos. O que temos aqui são promessas de que aqueles que estão sendo esmagados e oprimidos, na linguagem do salmo, amansados ou tornados mansos contra vontade, herdarão a terra e os benefícios que ela proporciona. O salmo não faz um elogio à passividade mórbida, mas tenta a todo custo trazer esperança àqueles que querem reagir à injustiça, mas que estão momentaneamente incapacitados de fazê-lo. 

O texto de Mateus não é diferente. Basta que verifiquemos a situação em que Jesus fala de si mesmo e da sua resistência não violenta, contra a iniquidade flagrante que está aprisionando o seu profeta preferido, João Batista. João encontra-se nas masmorras de Herodes pelo fato de ter denunciado a iniquidade do rei. Encontra-se separado do seu rebanho pela força de poder ilegalmente constituído. Encontra-se amordaçado por aqueles em quem a sua mensagem abriu feridas incuráveis. Quando os discípulos de João, e até mesmo alguns dos seus discípulos pensavam em lutar contra estas forças com lanças e espadas, Jesus propõe uma resistência pacífica, mas consistente. E para aqueles que já se tinham esgotado as suas forças, na tentativa inglória de apenas sobreviverem, ele oferece o ombro para com eles dividir este enorme fardo. 

Se por um lado a bem aventurança nos fala da necessidade de resistência, por outro ela conclama a solidariedade com os mais manifestamente achatados e amordaçados. Porém, a promessa da herança da terra não é jamais uma projeção para o mundo que está além deste nosso. Ela é real, e devemos nos empenhar ao extremo para fazê-la cada vez mais próxima de nós. Na verdade ela é mais do que uma promessa, ela é a antecipação de uma realidade que se aproxima sem que nada ou ninguém possa impedir. Não sei bem se é o caso, mas me veio à lembrança de um enigma sobre quem sairia vencedor em um duelo travado entre o melhor atirador do mundo, munido da segunda arma mais precisa já fabricada; o segundo melhor atirador do mundo, munido do mais preciso armamento; finalmente, uma pessoa que nunca havia disparado sequer um tiro em sua vida e de posse de uma garrucha enferrujada sem munição. A intuição nos faria pensar em que um dos dois experts sairia vitorioso, mas a razão não. Uma vez que o leigo não oferecia qualquer risco aos demais, caberia a eles preocuparem-se um com o outro, alvejando-se simultaneamente. Ambos morreriam, devido à precisão dos seus tiros, e o nosso manso permaneceria vivo e venceria o duelo, ou seja, na linguagem do sermão do monte, herdaria a terra.

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