Movido pela compaixão

Vendo-a, o Senhor se compadeceu dela e lhe disse: Não chores! Lucas 7,13
A ressurreição do filho da viúva de Naim, Pierre Bouilonn (1776-1831)
Leia Lc 7, 11-17

A versão Revista e Corrigida da Bíblia da Sociedade Bíblia do Brasil traduz o versículo citado assim: E, vendo-a, o Senhor moveu-se de íntima compaixão por ela e disse-lhe: Não chores. Diferentemente de nós que poeticamente consideramos que o coração é o órgão responsável pelos sentimentos, os orientais dizem ser a região do abdômen o lugar onde o corpo humano responsável por expressá-los. Este texto afirma literalmente isso, pois mover-se de íntima compaixão não é nada além do que ter as entranhas reviradas. Na realidade estas pessoas que vivem do outro lado do mundo podem não se deixar levar pela mesma conotação poética que nós somos tomados nessas horas, mas com certeza, a forma deles sentir é menos suspeita, mais espontânea e muito menos disfarçável. Para nós a expressão de um sentimento de dor se faz simplesmente com a cabeça baixa e olhos ligeiramente mareados.

Em seu blog http://vikarol.blogspot.com.br/2010/05/olhos-mareados.html a blogueira Vivi escreveu algo que reitera plenamente essa ideia: Quando alguém precisa da gente, nem sempre pede ou nem sempre sabe exatamente que está precisando. Cabe a nós, que parcialmente estamos de fora da situação problemática, perceber, se compadecer com aquela dor e, sem sofrer no lugar, oferecer o apoio. E o apoio não deve ser de acordo com o que você acha que é o correto, e sim deve vir na medida em que o outro precisa e demonstra necessitar. Se apoiar é ficar distante ou em silêncio, que seja. Se o apoio é um simples abraço e um cineminha pra descontrair, diga amém

É assim que a sociedade em que vivemos nos ensinou a sentir e a se comportar diante da dor alheia: sem sofrer no lugar e apoiar na medida exata do que se acha correto, o que é bem menos do que na medida do possível, que é o que sempre verbalmente nos propomos. Ou seja, estamos diante de duas formas distintas de compaixão: a dos orientais, demonstrada por Jesus, e a dos ocidentais que estamos acostumados. Não imaginem vocês que eu tenho a ilusão de que todos na cidade de Naim estavam movidos pelo mesmo sentimento de Jesus ou de parte multidão que acompanhava o cortejo. Na certa muito dos que viram o corpo do jovem passar e mesmo alguns dos que o seguiam para fora da cidade até o local de sepultamento, ficaram tristes, mareados, mas suas entranhas não se revolveram em sinal de dor e de compaixão.

Confesso publicamente que uma das minhas maiores falhas como pastor foi não ter acompanhado o sepultamento de Wellington Menezes, aquele rapaz que assassinou brutalmente doze crianças na tragédia que ficou conhecida mundialmente como o Massacre de Realengo. Quando vi pela televisão aquele caixão totalmente abandonado no pátio do cemitério, todo o meu propósito de servir a Cristo e à causa do evangelho se desmoronaram totalmente bem ali na minha frente. Embora o sentimento coletivo fosse de indignação e aversão à atitude insana e injustificável daquele jovem, é nosso dever compreender que ali estava uma alma pela qual Jesus também morreu. Goethe dizia: Eu não vejo pecado algum nos outros que eu mesmo não tivesse cometido. Minha intenção era ir ao sepultamento sem identificar a igreja na qual congrego. Jamais ia querer ver a comunidade ser envolvida na minha atitude pessoal, para a qual teria muito pouco ou quase nada a explicar à opinião pública, mas eu como pastor deveria ter superado esta hesitação e assistido àquele funeral.

O que aconteceu comigo foi um caso de compaixão remota, aquela que normalmente aflora depois do fato ser consumado, depois de nada mais poder ser feito. Assim é a grande maioria das demonstrações de compaixão no mundo ocidental. Elas são de fato compaixões intelectuais, pois neste caso é o cérebro, e não coração, que fala mais alto. Se Jesus tivesse parado para refletir na dor daquela mãe; se tivesse dado um tempo para ponderar sobre os efeitos trágicos que a morte do jovem de Naim traria para aquela comunidade; se ele tivesse tentado digerir o clima catastrófico daquele acontecimento; Jesus teria dado uma prova irrefutável de solidariedade e de consentimento, de sentir junto, mas o caixão teria passado e o jovem continuaria morto. As entranhas se reviraram antes mesmo que o coração pudesse sentir, e ainda antes que o cérebro pudesse processar aquela informação, por causa disso a vida voltou àquele corpo. Por causa disso o pranto de converteu em riso. Por causa disso o desespero se tornou esperança.

Ao dizer para a viúva “não chores”, Jesus estava lhe pedindo mais do que o impossível. Como dizer para uma mãe não chorar a morte de seu filho único? Contudo, Jesus não o fez por mero consolo ou por não ter o que dizer. Ele estava dizendo não chores porque a compaixão que nos revira por dentro é a única inteiramente capaz de gerar a vida e de vencer a morte.

Nota: Este é o texto sugerido pelo Calendário Litúrgico de hoje, e como este era um arrependimento que há muito eu queria deixar público, interrompi a meditação sobre o Pentecostes, que continuará em seguida. Por isso peço que me desculpem.

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