Amigo é pra essas coisas

Não me deixes afundar na lama. Livra-me dos meus inimigos e das águas profundas da morte. Não deixes que as ondas me cubram. Não permitas que eu me afogue em águas profundas, nem que seja engolido pela sepultura. Salmos 69.14-15
Eu gosto de porcos e porcos gostam de mim, Miru Kim (1981-) 
Desde muito tempo a experiência de uma situação adversa foi associada a cair em um abismo profundo. As gírias “estou pra baixo”, “me afundei”, “estou num buraco” e outras tantas exemplificam bem o que estou dizendo. Da mesma forma, o resgate desta situação foi associado ao soerguimento, à elevação do indivíduo ou do grupo a um patamar mais elevado, portanto, mais favorável que o anterior. “Estou por cima da carne seca” seria a expressão popular para este estado emocional. E a Bíblia não fugiu a essa regra, pois todas as narrativas que abordam pelo menos uma destas situações, o fazem com base neste sentimento do senso comum. Tanto é assim que o lugar de tormento, identificado pelos literalistas como inferno, fica sempre embaixo. Ao passo que o céu de bênção fica sempre acima. O curioso é que ainda se pense assim, muito tempo depois da descoberta de que o planeta que habitamos é um ínfimo ponto em uma imensidão infinita que se estende para todas as direções.

Para o homem moderno, a concepção de mundo em três planos: céu, terra, inferno, não faz qualquer sentido, como não faz sentido também intervenção de um plano no outro, e nisso eu lhe dou total razão, pois como conceber que o mundo criado por Deus, com tanto carinho e esmero, esteja agora sob o poder de seu inimigo mais ferrenho? É muito provável que o discurso teológico que tem como base que o abismo citado acima é um castigo presente, e que será exponencialmente aumentado no futuro, também não faça qualquer sentido. No lugar deles eu não aceitaria.

Muito embora este discurso na igreja funcione muito mais na teórica do que efetivamente na prática, pois, apesar de se esperar a segunda vinda de Cristo para muito breve, ainda compramos casas para pagar em vinte ou trinta anos, medida de tempo impensável para aqueles que diária e fervorosamente oram Maranata, ou vem Jesus. De igual modo, aqueles que têm o costume de subir ao monte para se aproximarem de Deus, repetiriam esta prática, mesmo em viagem a um hemisfério ou meridiano opostos ao seu, por conseguinte em um céu, que em relação ao seu céu de origem, está abaixo e não acima, como poderiam pensar. A verdade é que estas disposições funcionam até certo ponto, mesmo na cabeça dos mais fundamentalistas.

Contudo, se os parâmetros criados pela teologia judaico-cristã não funcionam para o homem moderno em qualquer circunstância, não é assim com a ideia de “pra baixo” e “pra cima”. As pessoas sabem bem distinguirem essas duas situações em suas vidas. Se não repetem com as mesmas palavras a oração do salmista no texto que serve de base para esta meditação, ou melhor, se não oram a Deus desta forma, é exatamente assim que se confidenciam ao amigo íntimo ou ao seu analista. E a questão aqui não é a forma nem o conteúdo, mas sim a quem estas palavras são direcionadas. 

A música Amigo é para estas coisas, imortalizada pelo MPB4, tem o enredo e o desfecho que encerram estas minhas palavras. Dois velhos amigos que se encontram em estados diferentes, um “pra baixo” e outro “pra cima”. O que está para baixo pede ao outro apenas aquilo que este poderia de fato fazer por ele. Coisas tais como, pagar-lhe uma bebida e ouvi-lo com atenção, nada além. Até mesmo a oferta de auxílio financeiro não é aceita, sob o pretexto feliz e inspirado das palavras: o apreço não tem preço. E é aqui que a oração do salmista faz toda a diferença. O salmista está orando para quem realmente pode mudar a sua situação. Ele está se abrindo para quem realmente pode inverter os polos da sua vida.

Tenho pra mim que esta é uma prova irrefutável da enganosa pretensão de nos colocarmos como cristãos e como igreja de Jesus Cristo no lugar de intermediadores desta mudança. Está mais do que na hora de percebermos que não somos os últimos guardiões da fé e a única possibilidade que tem o vizinho e o amigo não cristão de sair da sua cova ou sepultura em que se encontra em vida. Como bem dizia Dietrich Bonhoeffer: Não sou eu quem está entre Deus e meu próximo, e sim Deus que está entre nós. Se realmente queremos propagar a viabilidade dessa mudança, está na hora de anunciarmos aquele que pode mudar, em vez de chamar a atenção para nós, nossos pastores ou nossas igrejas.

Não é a toa que Bonhoeffer disse: Devo falar mais com Deus sobre o meu próximo, do que com o meu próximo sobre Deus. Também não é a toa que o salmista no verso 16, que vem imediatamente a seguir, complementa: Ó Senhor Deus, tu és bom e amoroso; responde-me e vem me ajudar, pois é grande a tua compaixão.

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