A Bíblia é ou contém?

Cristo morto, Andrea Mantegna (1431-1506)
Para a grande maioria dos cristãos a resposta mais imediata para a pergunta “o que é a Bíblia?” seja esta: Ela é a Palavra de Deus. E acreditem, alguns deles estão certos. Já a maioria dos não tão crédulos responderia que, na verdade, ela apenas contém a Palavra de Deus. E não seria verdadeiro que dentre estes haveria um pequeno grupo que também estaria certo? Afinal de contas, para você que está lendo esta postagem, ela é ou contém a Palavra da Deus? Antes que alguém se arvore em repetir alguma destas respostas acima, ou que tenha outra que, por motivos óbvios, não será citada aqui, eu gostaria de fazer algumas pequenas considerações sem qualquer pretensão mediar a questão ou de esgotar essa milenar temática.

Primeiramente veremos se ela de fato contém a Palavra de Deus. Os cristãos antigos hão de se lembrar de um hino, que embora seja pouco cantado pela igreja hoje, chama a Bíblia de um nome pouco recomendado. A letra do hino diz assim:
Enquanto, ó Salvador, teu livro ler,
Meus olhos vem abrir pois quero ver
Na mera letra além, o que Senhor,
Nos revelaste em teu imenso amor.

Isso mesmo, o autor chama a Bíblia de mera letra, e isso é equivalente a chamá-la de um livro qualquer que apenas contém a Palavra de Deus. Contudo, tenho a certeza de que não foi esta a proposta inicial deste autor. O que fiz agora foi uma afronta ao seu inspirado cântico de louvor. Fiz apenas citar uma dedução precipitada, das muitas que podem ocorrer, principalmente quando lidamos com a Bíblia supondo que nela apenas contém a Palavra de Deus. Mas o que o autor quis de fato dizer que, embora seja sagrada e seja a expressão mais exata da Palavra de Deus que já foi escrita, ela cede lugar a uma palavra maior, que é a Palavra de Deus encarnada na pessoa de Jesus Cristo. E nesta comparação, e apenas nessa comparação, este é o lugar apropriado para que a deixemos. Numa posição subalterna, apenas como mera letra, diante da verdadeira e única Palavra de que jamais conhecemos.

Mas ainda assim prevalece o fato de que ela pode apenas conter a Palavra de Deus, mas isso tiraria dela a sua força e o seu propósito. Pois se ela apenas contém, como poderemos valorizar o importante em contrapartida ao secundário? Como discerniremos o que é mandamento divino daquilo que representa mais o estado emocional do escritor naquele momento? Como dividir o que é Palavra de Deus daquilo que não é? Sabe-se que na Bíblia existem prescrições para épocas e situações definidas, como por exemplo, como se deve tratar um escravo ou uma pessoa flagrada em delito. Não cabe mais discutir sobre o uso atual de certas deliberações que foram importantes no seu contexto, mas que não se aplicam de forma alguma hoje em dia. A lei de Talião é um exemplo claro do que tento dizer. Ela determinava que toda vingança deveria ser nos termos de olho por olho e dente por dente, algo de um apelo absurdo à violência, não é? Contudo, poucos se dão conta de que isto foi uma feliz e oportuna tentativa de conter a desenfreada sede de vingança que campeava no mundo de então. A partir desta lei deveria ser só olho por olho e dente por dente.

O que dizer agora para os que afirmam categoricamente que ela é a Palavra de Deus? Para começar eu diria que se ela é a Palavra de Deus irrestrita e imutável, ela não poderia ser traduzida ou sequer interpretada. Deveria ser lida em ocasiões especiais, jamais seria impressa ou escrita por instrumentos profanos e guardada intocável em uma redoma. Perguntaria também: se ela encerra em si esta autoridade, por que ela parou de ser escrita? Será que Deus parou de nos comunicar a sua vontade? O meu Pai trabalha até agora, disse Jesus, e esta é a prova irrefutável de que Deus continua falando e que sua Palavra continua viva entre nós, e que ela não caberia em apenas um livro, mesmo que a quantidade das suas páginas fosse de um número inimaginável.

Outra questão que transita na contramão dos que afirmam ser ela a Palavra de Deus, é que na Bíblia temos o registro de palavras de pessoas que se manifestaram radicalmente contrárias ao seu contexto. Temos a palavra de imbecis, como Faraó, Nabucodonosor, Gamaliel e até do Diabo, e isso literal, não é força de expressão. Não se coloca em questão a inspiração do autor quando agregou estes depoimentos infelizes ao texto sagrado. Temos que ter em conta que o registro destas palavras é inspirado, embora as palavras não sejam, ou que nem de longe traduzem a verdade da Palavra de Deus.

É ou contém? Isso passa pela interpretação do que é sagrado. Se alguém ao receber uma Bíblia e simplesmente a tratar como um objeto sagrado, idolatrá-la e defendê-la contra tudo e contra todos, para este não fará qualquer diferença se ela é ou contém. A Bíblia, neste caso será mais um amuleto religioso acima destas questões. Mas quando alguém mergulha em seu texto, quando luta contra as suas palavras, quando tenta tirar dela o que ela tem de mais oculto, aí sim esse alguém descobre o seu peso e o seu valor. A partir deste ponto, se ela é ou contém a Palavra de Deus passa ser irrelevante diante da verdade avassaladora que abrirá nas trevas da dúvida um caminho de liberdade e intimidade com Deus. A partir daí temos a sua promessa diz que a sua Palavra não mais será escrita com papel e tinta, mas que será gravada com a sua própria mão em nossos corações.

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