O homem de Deus e o profeta III

O homem de Deus e Jeroboão, Fragonard (1732-1806)

Amadeus
Ainda há um terceiro aspecto fundamental na Palavra de Deus: Ela não é proferida para ser compreendida e sim para ser obedecida. O homem de Deus havia entendido perfeitamente que não deveria aceitar oferta alguma pela sua João 3:16-19
missão e que não deveria voltar pelo caminho que viera. Sem a pretensão de querer contradizer o fundamento do aspecto citado, algumas conclusões podemos tirar daí. Não voltar pelo mesmo caminho, tem o significado de tirar do enviado de Deus qualquer mérito ou orgulho pelo sucesso da missão. Voltar pelo mesmo caminho significaria ser reconhecido nos lugares por onde havia passado, e, consequentemente, ser saudado com honras e glórias pelas pessoas que o reconhecessem. O novo caminho significa o anonimato e a renúncia total a qualquer tipo de crédito. Já o fato de não aceitar ofertas tem a ver com o ineditismo da missão. Não são cotidianos esses milagres. O que normalmente ocorre, é o braço do poder tentando a todo custo imobilizar a ação dos profetas de Deus, e os altares pagãos constantemente rachando a unidade do seu povo. A função do homem de Deus é lutar com todas as suas forças para evitar que isso aconteça. Muito raramente o profeta vai rachar estes altares e imobilizar o braço do poder com algo além da fidelidade e persistência no seu ministério. Mas esta era uma missão muito particular e específica, estava em jogo a sobrevivência da sua nação. Não caberia a ele qualquer forma de remuneração ou recompensa. O autor da narrativa deixou bem claro que a participação humana nos fatos extraordinários que a Palavra de Deus vem realizar é apenas figurativa, e que o portador desta Palavra nada deve receber por isso.

Talvez seja por isso que a Bíblia não lhe confere o título de profeta, embora ele reconhecidamente o seja. Ao preferir chamá-lo simplesmente de homem de Deus, faz questão de ressaltar o aspecto que faz essa missão ser única e específica. Ao chamá-lo de homem de Deus, retira dele os encargos naturais e consequentes do profetismo como profissão remunerada. O texto apresenta quais são os dois aspectos do profetismo através de dois profetas diferentes. O velho, que acomodado em sua casa, desfrutando dos bens que recebeu durante o transcurso do seu longo ministério. E que ministério é esse? É aquele ministério permanente, que é exercido pelo profeta de Deus à frente de sua igreja. Paulo quando escreveu aos coríntios definiu muito bem as funções deste ministério. Edificar, consolar e exortar. Estas são as funções que o profeta de Deus está comissionado a realizar constantemente. Para isso, tem direito ao seu salário como qualquer outro trabalhador. Mas para ser o portador da Palavra de Deus contra a injustiça e a iniquidade não tem que receber remuneração ou prêmios. Para ser canal da bênção quando Deus realiza os seus feitos extraordinários muito menos ainda.

O que estarrece a todos é que a igreja está pagando, e pagando caro, justamente pelo que não deveria pagar, e com isso, não está exigindo dos seus profetas o zelo, a atenção e o serviço que eles realmente deveriam prestar pelos salários que recebem. Alguém pode querer vida mais confortável do que este profeta? Ou não seria muito mais prazeroso montar uma parafernália, esperar que o povo venha a si, simular alguma humildade disfarçada de piedade, transvestir-se de uma santidade bem duvidosa para cobrar curas e milagres que nunca se materializam. Consolar a família que mesmo após sinceras orações perdeu o seu ente querido, não é coisa que se faça. Solidarizar-se com o membro que perdeu sua única fonte de renda, a despeito de ser um crente fiel, não é coisa que se cogite. Ir atrás da ovelha que durante anos foi presente e participante, mas que alguma circunstância está perdida, nem pensar.

Mas no final das contas, a igreja é a grande culpada. Dizia sempre o meu amigo Wesley, falecido recentemente: Quem acredita nesses falsos profetas, tem mais é que ser enganado mesmo. Sejamos sinceros, a igreja está repleta daqueles que visam exclusivamente a bênção, e não estão nem aí para os sinais dos tempos. Daqueles que buscam o caminho curto e fácil da retribuição, e não da sã doutrina. Daqueles que ignoram por completo a advertência de Paulo, quando ele diz: Se alguém ensina alguma outra doutrina e se não conforma com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com a doutrina que é segundo a piedade, é louco e nada sabe, mas delira acerca de questões e contendas de palavras, das quais nascem invejas, porfias, blasfêmias, suspeitas ruins, contendas de homens corruptos de entendimento e privados da verdade, cuidando para que a piedade seja fonte de lucro. Aparta-te dos tais.

Eu dizia no começo deste terceiro argumento antes de divagar pelo caminho da denúncia: A Palavra de Deus está diante de nós para ser obedecida e não entendida. Enquanto o homem de Deus insistiu nela sem hesitação ou questionamentos, ela fez por cumprir fielmente o seu propósito, e o episódio poderia ter o seu desfecho aí. Mas por que razão ele resistiu à oferta do banquete do rei e foi sucumbir ante a pequena ceia do seu colega profeta? Por que a necessidade do outro em desviá-lo do seu caminho? Porque ambos quiseram comprovar a sua veracidade? Este é um poderoso sinal de que as forças contrárias à palavra de Deus estão vivas e atuantes. Este é o sinal que devemos estar sempre alerta para cumpri-la sem procurarmos entendê-la. Contudo, se ainda assim insistirmos em buscar algum sentido, este poderá ser encontrado no texto de II Reis 23, que fala do sepulcro único onde estranhamente estão enterrados dois profetas anônimos. Coincidentemente ou não, o texto ressalta que em vez de buscarmos razões, deveríamos atentar para os mais estranhos sinais que esta Palavra tem produzido à nossa volta.

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