A redescoberta do óbvio (final)

A Cidade de Deus, ilustração do século XV
Eles eram exatamente como nós, nada tinham de especial, nada de sobrenatural, nenhuma unção diferente. Como argumento, nós temos seu testemunho e sua história. Eles, porém, contavam unicamente com os ensinamentos dos apóstolos, a comunhão fraterna, a fração do pão e as orações, e como motivação, apenas o amor de Deus que lhes constrangia o coração. É preciso que nos perguntemos sempre como aqueles homens, mulheres e crianças conseguiram usar tão eficazmente essa combinação. Perguntar o que eles fizeram para se firmar no meio ao seu mundo de pluralidade de pensamentos, expectativas e necessidades. Precisamos buscar as raízes desse movimento, o que acendeu essa chama cuja luz e o calor que, passados dois mil anos, ainda nos ilumina e aquece. Onde eles foram buscar tamanha inspiração?

Pedro no seu primeiro sermão à população de Jerusalém praticamente não disse grandes novidades. Ele foi buscar no Primeiro Testamento, mais exatamente no profeta Joel, que tinha vivido uma situação de opressão muito semelhante a que os judeus comuns do primeiro século estavam vivendo. O profeta Joel falava de uma esperança que estava profundamente enraizada no coração de Deus: Derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; até sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito. Assim como Joel, Pedro entendeu que preencher os anseios desta multiplicidade de pessoas, somente o derramamento do amor de Deus. Que Deus enviara o seu Espírito não apenas tocar alguns, não apenas instruir uns poucos, não apensas nos influenciar determinado grupo, mas para ser derramado indistintamente sobre toda carne, todo ser humano, jovens, velhos, crianças, adultos, escravos, livres, homens, mulheres, todos, indistintamente todos. Como no episódio da prostituta que lava, beija e unge os pés de Jesus com um perfume caríssimo, Talvez duas gotas desse Espírito bastassem, mas Deus não fez economia, derramou seu Espírito.

Quando eu vejo a diversidade das pessoas que estavam presentes no primeiro sermão de Pedro, eu fico perplexo como aquelas palavras simples e conhecidas, tiveram poder para tocar aqueles corações e mentes tão diferentes. O texto de Atos diz que havia varões de todas as nações debaixo do céu: partos e medas, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia, e Judéia, e Capadócia, Ponto e Ásia, e Frígia e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes. Alguém aí já foi à Capadócia? Eu não fui mas li alguma coisa sobre essa cidade, se é que assim podemos chamar. É uma cidade inteira cavada na rocha. Até catedrais eles tem lá dentro. Como é que se faz para dialogar com gente que vive assim de modo tão diferente? Como se faz para se entender um beduíno árabe pensa? Isso só aconteceu porque, como nos disse o apóstolo são Paulo: O amor de Deus foi derramado em nossos corações, pelo Espírito Santo que nos foi dado.

É possível que eles tivessem um segundo elemento não menos importante: a doutrina em si. Não tanto pelo fato de ser nova, mas pelo fato de ser fiel. Quando lemos o livro dos Atos dos Apóstolos não nos damos conta do extenso período de tempo que ele cobre em poucas páginas. Para nós parece que os fatos estão numa sequência ininterrupta, mas foi bem assim que aconteceu. O grande apóstolo são Paulo ousou repetir palavras de Jesus que não constam dos evangelhos, e ele disse tão somente o seguinte: O que eu recebi do Senhor, também vos entreguei. Isso nos deixou com a nítida impressão de que ele saiu da sua experiência de na estrada de Damasco e iniciou imediatamente a sua pregação. Nos fez pensar que fosse uma consequência natural da sua conversão. Mas poucos sabem que entre um fato e outro passaram-se pelo menos dez anos. Paulo passou mais de 15 anos recebendo do Senhor, para depois então falar alguma coisa. Isto quer dizer que se o grande Paulo precisou desse tempo, ninguém mais tem o direito de pensar que falar de Jesus sem conhecê-lo, pois ninguém pode ser inteiramente fiel àquilo que não conhece. Nunca seremos integralmente fiéis à doutrina dos apóstolos se não a conhecermos na sua profundidade.

A igreja de hoje, com a sua intolerância religiosa, está totalmente na contra mão desta história. Nem mesmo um diálogo ecumênico somos capazes de manter. Não faz muito tempo que numa decisão inesperada, impensada e absurda, levou uma grande igreja a se desligar de um organismo ecumênico do qual ela era fundadora, e que na época, um dos seus pastores era nada menos que o presidente nacional deste organismo. Se nós cristãos não estamos conseguindo ser pelo menos simpáticos uns com os outros, o que não vai dizer de nós o mundo à nossa volta? Contar com a simpatia do povo foi apenas o primeiro passo. Falar a língua do povo era apenas o começo de um diálogo que exigiu muito mais que palavras. Paulo disse certa vez para uma igreja dividida pela discriminação: Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei.Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns.

É bem certo que o que temos é apenas uma doutrina. E é certo também que nenhum de nós, quer católicos romanos, quer ortodoxos, protestantes ou neopentecostais, encerra toda a verdade contida na Palavra de Deus. Em Coríntios 13 Paulo dizia que em parte conhecemos e em parte profetizamos, por isso que a doutrina que pregamos precisa necessariamente nos levar a juntar a nossa pequena parte a algo maior, a algo mais pleno e muito mais abrangente do que toda a nossa doutrina. Todo esse esforço conjunto visa levar o ser humano: Jovens, velhos, crianças, adultos, escravos, livres, homens e mulheres à consciência de que este Espírito já foi derramado sobre eles. Santo Agostinho dizia que no coração do homem há um enorme vazio, e que este vazio é do tamanho de Deus. Todo discurso religioso deve nos levar a dizer que somente o Espírito de Deus pode preencher este vazio que tanto nos aterroriza.

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