Parte de que, afinal?

A vinha encarnada de van Gogh
Por isso vos digo que vos tirarão o Reino de Deus e o darão a um povo que dê os frutos devidos. Mateus 21,43

Não pode haver uma relação mais apropriada do que a comparação que a Bíblia faz entre o povo de Deus e os trabalhadores de uma vinha. Muito embora a relação pastor/rebanho nos seja mais familiar, principalmente porque traduz com mais exatidão a realidade das igrejas que conhecemos, esta última coloca os leigos, pelo menos a sua esmagadora maioria, em uma condição de obediência cega e de inocência conveniente. Nos dias de hoje a relação pastor/rebanho se mostra bastante definida: ao rebanho cabe o sustento material, enquanto que o pastor cuida da “parte espiritual”.

Parte espiritual? Como soam ruins estas palavras. Dá a impressão de que o corpo de Cristo sofreu uma nova divisão. Agora não somos mais parte de um corpo físico em que Jesus é o cabeça e nós membros dependentes diretos dele e mutuamente dependentes uns dos outros. Não somos mais pé, olho, boca e mão. Não, na era digital a igreja é uma parte bem mais consistente do que um simples e reles membro. A igreja, representada pela totalidade da sua membresia ficou com toda a parte material, ou seja, ficou com tudo do que restou da “parte espiritual”. Essa, não. Essa é do pastor. Talvez seja justamente o olho grande na parte do pastor que tenha feito proliferar como nunca a quantidade de seminários, e que todos ficassem devidamente abarrotados de candidatos ao ministério pastoral. No meu tempo de estudante de Teologia, quando uma denominação conseguia formar em um ano cinco pastores, já deveria se dar por satisfeita. Se este número chegasse a dez, seria porque Jesus estava voltando mesmo.

Muitas vezes a igreja não se dá conta de que para sustentar essa avassaladora legião de clérigos, nem sempre o fruto do seu trabalho, no caso do rebanho o leite, será suficiente. Será preciso que se dê também a pele, e agradecidos de joelhos por ter conseguido preservar a própria carne. Outra coisa diferente dos anos 1970, é que os seminários formam teólogos, na expressão mais exata da palavra. Mas isso é apenas um sinal dos tempos, visto que hoje, as faculdades também não formam mais pedagogos, professores ou bacharéis em direito, e sim educadores e juristas. Um pastor pode ser contestado, sua mensagem criticada, mas o teólogo está num patamar acima. Ele sabe mais, por isso custa mais caro.

A relação pastor/rebanho, que foi alvo de uma insistente pregação de Jesus, é hoje uma relação de compromisso unilateral, pelo menos no que diz respeito à contribuição que é efetivamente devida a cada parte. O que mais se observa é a exigência cada vez maior da contribuição dos membros, em troca de promessas que o pastor faz, mas não em seu nome, e sim em nome de Deus. Visita a doentes, gabinete pastoral, assistência a fragilizados, consolo às famílias, nada disso importa mais. O que importa é a unção que cada um vai levar para a individualidade da sua casa.

Mas Jesus era muito inteligente. Ele sabia que uma relação baseada no respeito e na confiança não iria durar muito entre humanos como nós. Ele anteviu a profusão de lobos vestidos de ovelhas que assaltaria o seu rebanho, como também o quanto as suas ovelhas ficariam comprometidas com os bodes. Por isso a sua mensagem variava entre a ternura e a severidade, entre o coração e a cruz. Quando a sua mensagem era pastoral, quando ele visava tocar o consciente e o coração das pessoas, sua abordagem evocava um clima pastoril de consolo e confiança. Daí surgem as belíssimas imagens que as parábolas gentis e seus sermões pastorais nos trazem à mente. No entanto, quando a situação exigia confronto, quando a eterna questão da terra falava mais alto, seu discurso era outro. Daí vinham as causticantes parábolas que narravam os conflitos entre os vinhateiros e seus senhores.

Jesus expôs para nós duas imagens bem distintas: uma mesa com um banquete e uma torre de vigia, mas nunca condicionou uma à outra. Para ele o banquete sempre foi uma dádiva de Deus, por isso era algo que não se consumaria no nosso tempo. O encontro final com Deus que este banquete celebrava era alguma coisa que não dependia ou mesmo extrapolava o esforço humano. Para ele isso era uma realidade tão palpável que ele já nos via assentados nesta mesa. Não era uma questão de “se”, mas de “quando”. Sem querer fazer alusão a outros credos, seria bastante um ou dois dos seus sermões sobre ovelhas e pastores para colocá-lo no topo do rol da fama dos grandes pensadores.

Mas ele pretendia mais que isso. A sua verdadeira vocação o impelia para o deserto, para o lugar onde sonhos tem que ser escavados, plantados, regados e muito bem protegidos. O sonho de Deus está lá no seu lugar devido, mas enquanto esse sonho não chega, existe todo um reino a ser construído. Este reino é a única coisa que efetivamente ordenou que tomássemos posse. Numa conversa íntima quando o assunto era sobre as necessidades de alimento e vestuário, que par muitos se constitui em uma grande bênção, ele disse apenas: busquem primeiramente o Reino, e todas as outras coisas vocês encontrarão lá.

O que parecia ser um simples convite, crescer e tomar a importância de a ser a única preocupação dali em diante. A construção do Reino não exige muito, exige tudo, como dizia Mud. Se a igreja não se empenhar em construir, Deus providenciará outros meios, se a igreja se calar, as pedras clamarão. Por isso vos digo que vos tirarão o Reino de Deus e o darão a um povo que dê os frutos devidos. O que parece soar como ameaça é a mais pura constatação da responsabilidade da igreja. Jesus não disse que se a igreja não produzisse frutos, ele trocaria o seu pastor, que é o que se faz bastante. Ele não disse que se a igreja não produzisse frutos que os membros trocassem de igreja, que é o que se faz mais ainda. Ele disse que se a igreja não produzisse frutos ela seria descartada, e outro povo, que em nada se assemelha aquilo que hoje chamamos de igreja, seria colocado em seu lugar.

Antigamente eu cantava um hino, que na época não respondia os meus anseios e nem dava pistas de alguma breve melhora. Mas eu queria mesmo era cantar os hinos das ovelhas, que tem sempre finais felizes e promissores. Eu queria cantar que Deus vai fazer e acontecer, vai vir e arrebentar, mas não sem antes arrebatar. Mas na realidade, o hino que eu preciso cantar é esse, que fala que a vida é mesmo difícil e que ela há tribulações inerentes a ela. O hino não faz promessas, mas induz à confiança, não fala da glória do que está por vir, mas incita a lembrança do que já aconteceu. Não traz revelações bombásticas, mas diz entenderemos a razão de tudo um dia.

Bom, vou deixar de falar do hino e postá-lo como encerramento desta meditação.
Prossegue, ó alma; o trilho é estreito e escuro,
Mas no passado Deus guiou-te assim!
Confia agora a Deus o teu futuro,
E o que é mistério há de aclarar-se enfim.
Confia, ó alma, a sua mansa voz
Ainda acalma o vento e o mar feroz!

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