Conversa mole não leva a Roma

Dirce, a cristã, Henryk Siemiradzki (1843-1902)
Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas me conhecem, como o meu Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas. Ainda tenho outras ovelhas que não são deste redil: devo conduzi-las também; elas ouvirão a minha voz; então haverá um só rebanho, um só pastor. (Jo 10.14-16)

Não há um documento na Bíblia cuja contemporaneidade seja tão fiel quanto a carta que Paulo dirige aos cristãos de Roma. Não é por acaso que serviu de base doutrinária para todos os movimentos autênticos de renovação da igreja ao longo dos seus quase dois mil anos. 

Os movimentos que originaram a Reforma Protestante e a igreja Metodista não escaparam à regra. Foi ouvindo um comentário da transformação pessoal de Lutero, inspirado por esta epístola, que Wesley teve a experiência do Coração Aquecido.

Então, qual seria a sua mística? O que ela contém de tão diferente que a faz ser tão única? Que circunstâncias da vida conduziram Paulo a este extraordinário voo na órbita estratosférica do pensamento cristão?

Fazendo um rápido resumo histórico podemos perceber alguns aspectos daquela primitiva comunidade religiosa. Embora não se saiba quem iniciou a obra de evangelização em Roma, pode-se afirmar com certeza que não foi nenhum dos grandes evangelistas do primeiro século, nem Paulo (Rm 15.22), nem Pedro e, até onde se sabe, nenhum outro apóstolo. Esta igreja estava sediada na cidade de Roma, que na época era povoada por cerca de quarenta mil judeus descendentes dos chamados Libertos, (At 6,9) e possuía características marcantes. Uma delas era a sua grande distância da igreja sede, Jerusalém, o que revelou a fraca influência da sede em seus assuntos doutrinários e a administrativos. Podemos verificar que era composta tanto de judeus como de gentios convertidos à nova fé.

A data da escrita desta carta é estimada por volta do ano 57 a.D., coincidindo com o retorno dos judeus que foram expulsos de Roma, em 49, pelo imperador Cláudio. Os motivos da expulsão, segundo Suetônio, seriam os constantes tumultos causados pelos judeus instigados por tal de Crestos. Se levarmos em consideração que as vogais E e I possuem pronúncias semelhantes, concluiremos que tais desordens estariam relacionadas ao desenvolvimento da fé cristã entre os judeus em Roma (Leenhardt, Franz - Epístola aos Romanos p.10). Estes são dados fundamentais para a compreensão deste tratado de teologia e fé.

O inquieto ambiente a que Paulo se dirige era composto por cristãos de origem gentílica, que haviam permanecido em Roma e adaptado a igreja às suas doutrinas e práticas, e por judeus cristãos que retornavam vindicando um retrocesso à ordem tradicional judaizante, a qual achavam verdadeira e apropriada. Nada diferente do que a velha disputa entre tradição e modernidade. Era de se esperar que o apóstolo, nesta carta, compusesse um extenso tratado de eclesiologia, afirmando ser Jerusalém a sede da fé Cristã, autenticando a autoridade do Colégio dos Doze e insistindo no dever de se permanecer fiel à fé apostólica. Nada disso, pelo contrário, Paulo tenta resolver a questão a partir dos elementos que os romanos dispunham. Revelando-lhes a realidade mais profunda e misteriosa da Igreja, o apóstolo quer mostrar-lhes que todos os crentes em Cristo estão também debaixo das promessas feitas a Abraão, e que são imediatamente incorporados ao povo de Deus pela fé e pelo batismo. Este é o cerne da mensagem de todo o seu ministério: A justificação pela fé.

Paulo conhecia muito pouco a comunidade a quem se dirige, a não ser pelas advertências que faz nos capítulos XIV, XV e XVI, não parece ter idéias claras do que se passa ali, mas ele precisa fazer desta igreja a sua sólida base para as viagens missionárias que pretende fazer ao ocidente. É nesta carta que, desvinculado das questões de interesse local, como vemos em Corinto, Paulo expõe toda a problemática da ação missionária: quanto mais a Igreja se expande, maior é a ameaça a sua unidade. E aqui se levanta uma séria questão: poderia a Igreja de Roma fazer parte do Corpo de Cristo quando estava totalmente desvinculada da Igreja de Jerusalém? Passando por cima das disputas internas, Paulo afirma categoricamente que o poder da Lei pode se deteriorar ou mesmo enfraquecer com a distância, o poder de Cristo que nos justifica pela fé, jamais. Paulo vai mais longe ao dizer que o ser humano é totalmente incapaz de enxergar a sua própria miséria. É preciso que este se conheça para que renuncie ao inútil esforço de justificar-se através das obras que pratica ou das doutrinas que engendra. Sua justificação se dá exclusivamente pela fé, e sob este aspecto não há neófito nem decano, nem servo nem livre, nem homem nem mulher, nem néscio e nem culto, nem judeu nem grego, nem próximo e nem distante.

Para Paulo, Roma é a igreja base ideal para uma missão totalmente nova, que em nada se parece com as missões anteriores. Não que estas não houvessem sido coroadas de êxito, mas já haviam ficado para trás. E é para este novo desafio que Paulo incita os cristãos de Roma a deixarem de lado as questões doutrinárias menores, e objetivar o foco principal, que é a expansão do evangelho. Para tanto, é importante que aquela igreja não seja dividida por problemas e questões pessoais. Nada além de uma regra simples lhes é sugerida: quem procede de certa maneira, não escandalize quem assim não procede, e aquele que tem determinada atitude, não condene quem não a tem, pois ambos são igualmente de Cristo e Cristo de Deus. Não foi por outro motivo que Wesley tomou para si uma regra de Santo Agostinho que propôs: Unidade no essencial. Liberdade no secundário. E sobre todas as coisas, amor.

O curioso é que para nós, cristão de hoje, também não é o pecado pela unidade nas coisas essenciais que dificulta o relacionamento entre as diversas denominações. As igrejas cristãs, como num todo, tem resistido bem às investidas de grandes pensadores ateus, como H.G. Wells, Nietzsche, Bernard Shaw e Voltaire, e rechaçado oportunistas que, de tempos em tempos, tem tentado, com seus “achados evangelhos perdidos” atingir a essência da nossa fé. Não pecamos por isso. Pecamos primeiramente por querer que o secundário particular de cada um, prevaleça sobre os demais. Pecamos em tentar impor a outros particularidades doutrinárias e manifestações de fé, que embora sejam importante para nós, nada acrescenta a fé de outros. Mas pecamos muito mais quando passivamente permitimos que práticas e doutrinas secundárias que são próprias de outras alguns grupos, se revelem em nosso meio maquiadas como essenciais. Não sei se “maquiadas ou macaqueadas”, como dizia o rev. Juracy Sias, uma vez que não temos nem cacoete para procedermos assim, ele completa.

Será que ainda temos alguma dúvida que, sendo como sempre fomos, Cristo nos aceita como seus discípulos? A crueza das palavras de Paulo, que foram bastante aos romanos, não seriam eficazes também hoje? Vamos continuar a ignorá-las?  Meus irmãos, peço que tomem cuidado com as pessoas que provocam divisões, que atrapalham os outros na fé e que vão contra o ensinamento que vocês receberam. Afastem-se dessas pessoas porque os que fazem essas coisas não estão servindo a Cristo, o nosso Senhor, mas a si mesmos. Por meio de conversa macia e com bajulação, eles enganam o coração das pessoas simples (Rm 16.17-18 NTLH). Este era o problema que Paulo detectou na Igreja de Roma mesmo estando distante. Aliás, não é preciso ter a percepção de Paulo para perceber quando uma prática estranha é pela força enxertada em outra tradição, nem difícil exagerar os elementos estranhos ao culto, que estão prevalecendo, em detrimento de outros mais incisivos e mais consistentes com a fé que abraçamos. O que perece ser difícil pára alguns é perceber quando a conversa mole, carregada de sentimentalismo, sobrepuja ou mesmo aniquila a razão. Até quando vamos continuar jogando no ralo a doutrina que aprendemos que se provou ser tão beneficamente inovadora, para colhermos apenas lisonja, engano, conversa mole e bajulação?

Todo este caos doutrinário só faz nos levar para longe da principal tarefa da igreja, ser a sólida base missionária para a salvação do mundo. Precisamos urgentemente voltar a ser esta base sólida para que o plano de Deus seja uma realidade através de nós, ao custo de ficarmos de fora, apenas ouvindo as pedras clamarem. Podemos continuar nos iludindo, mas isso não nos fará inocentes. Conhecemos bem a vontade do único Pastor. Sabemos que ele vai chamar todas as suas ovelhas de uma só vez, a uma só voz, para que, cada uma, segundo o seu curral, se reúna no único, viável e possível rebanho. Resta-nos responder apenas a última questão: será que completamente descaracterizados de uma tradição e totalmente desprovidos de identidade, as mesmas que nos levaram um dia aos pés do senhorio de Cristo, estaremos ainda incluídos neste rebanho?

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