Martirio de cristãos, Konstantin Flavitsky em 1862 |
O próprio Jesus se identifica como o mártir de Deus. No seu sacrifício voluntariamente aceito, ele dá efetivamente o testemunho supremo da sua fidelidade à missão que o Pai lhe confiou. Segundo o evangelista João, Jesus não somente conheceu de antemão como também livremente aceitou a sua morte como a perfeita homenagem que deveria ser prestada ao seu Pai: Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la. Este mandato recebi de meu Pai. (Jo 10.18) Para que não pairasse dúvidas quanto à finalidade da sua missão ele igualmente a confirma diante de Pilatos, que era quem detinha o poder de promulgar a sentença de morte: Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. (Jo 18.37)
Para Lucas, é a Paixão de Jesus que sublinha os traços que o definirão para sempre como o mártir por excelência da fé cristã: conforto da graça divina na hora da angústia; silêncio e paciência diante das acusações e dos ultrajes; inocência reconhecida por Pilatos e por Herodes; esquecimento dos próprios sofrimentos; acolhida prestada ao ladrão arrependido; perdão concedido a todos os que os traíram, o martirizaram e o abandonaram.
Com profundidade mais acentuada, o Segundo Testamente reconhece Jesus como o Servo Sofredor anunciado por Isaías. Nesta perspectiva, a Paixão de Jesus aparece como essencial à sua missão. Do mesmo modo que o Servo deve sofrer e morrer para justificar multidões, –Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si. (Is 53.11) – Jesus deve passar pela morte para trazer ao mundo a redenção dos pecados: Tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. (Mt 20.28) Este é o sentido do “é preciso” que Jesus repetidas vezes reitera em suas pregações. O desígnio da salvação de Deus passa pelo sofrimento e pela morte da sua testemunha maior.
Não foi assim com os profetas? As testemunhas de Deus anteriores a Jesus não foram perseguidas e condenadas à morte? Não é uma coincidência acidental. Jesus se reconhece como a testemunha que consuma o plano divino fielmente testemunhado pela tradição profética. Mostrando também fiel a esta tradição, marcha para Jerusalém, porque: não convém que um profeta pereça fora de Jerusalém. Esta paixão faz de Jesus a vítima expiatória que substitui todas as vítimas de sacrifício até então, pois sem derramamento de sangue não pode haver redenção. (Hb 13.33 e 9.22)
O martírio de Cristo fundou a igreja. A igreja, por sua vez, é chamada para dar testemunho de que aquele martírio é a salvação de todos. Esse testemunho deve assegurar que Jesus não foi simplesmente alguém que morreu por testemunhar a sua fé, como passariam a ser aqueles que mais tarde seriam suas testemunhas. Jesus veio para ser a plenificação do Messias, aquele que veio definitivamente salvar o Israel de Deus e restaurar a filiação que havia se perdido com o pecado. Nesse sentido ele adverte que os que se propusessem a segui-lo sofreriam perseguições, torturas e até morreriam, pois foi exatamente isso que fizeram com ele.
Não é sem razão que o martírio de Estevão provocou, além da expansão da igreja para fora dos muros de Jerusalém, o que muitos teólogos afirmam ser a principal motivação da conversão de Paulo. O livro do Apocalipse, em vez de ser lido como meras previsões de futuro, deveria ser considerado o livro dos mártires. Aquelas fiéis testemunhas que deram à Igreja o ao mundo a prova cabal de que vale a pena morrer por um Senhor que deu a sua própria vida para que tanto a nossa vida quanto a nossa morte não fossem em vão.
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