O que é MITO? II

Lilith, a primeira mulher de Adão (mitologia hebraica), Daniel Martins
Mitos na Sagrada Escritura?
Quem se basear nas menções explícitas da palavra mitós terá indiscutivelmente a impressão de que a Sagrada Escritura rejeita sem mais nem menos o mito. Esse figura sempre no sentido tardio de narrativa fictícia (afora Eclo 20.19, onde significa simplesmente palavra). Nas epístolas pastorais (I Tm 1.4; 4.7; Tt 1.14) o mito é combatido como fraude e erro e como irreconciliável com a verdade (IITm 4.4; Tt 1.14) e com a oíkonomía Teon (I Tm 1.4): trata-se provavelmente de fábulas judaicas e genealogias (I Tm 1.4; talvez séries de eras, de inspiração gnóstica?), que devem ser chamadas de profanas (I Tm 4.7; cf. 6.20: palavreado profano; ver também II Tm 2.16). Em II Pe 1.16 mitós está em oposição ao relatório verdadeiro de uma testemunha ocular.

À primeira vista, portanto, poderia parecer male sonans et piarum aurium offensivum (palavra maldosa que ofende os ouvidos) aplicar aos livros sagrados a noção de mito. Mas assim mesmo pode-se perguntar se não seria desejável lançar mão do termo mito na explicação de determinados textos, tomando então o mito na sua estrutura formal de narrativa sobre a realidade histórica de um acontecimento primitivo, repetido no culto. Por exemplo, Gn 1 já foi interpretado como um mito, recitado na festa do Ano Novo judeu; talvez possa-se admitir o termo “mítico” para caracterizar a operação contínua do ato criador de Deus “no princípio”. O ato salvador de Deus, realizado uma vez no passado (p. ex., o Êxodo) toma-se como que novamente presente pelo rito (a páscoa dos judeus); até na celebração da Eucaristia o sacrifício histórico de Cristo é repetido todo dia muitas vezes. Também à queda no pecado pode-se aplicar, talvez, a estrutura formal do mito: a desobediência do primeiro casal é uma realidade sempre atual, e o que aconteceu no princípio é um protótipo: a queda de Adão repete-se em cada homem. E não poderia toda a obra salvífica de Cristo ser caracterizada como mítica, neste sentido de que aquilo que uma vez se deu na cruz está sempre presente para a fé, sempre de novo atual para nós, renovado toda manhã?

Em relação com o mito desenvolveu-se nestes últimos anos uma controvérsia muito importante. Em torno de uma conferência de Rudolf Bultmann abriu-se uma discussão teológica que enveredou para uma larga publicidade. A intenção de Bultmann é demitologizar a mensagem da salvação, isto é, interpretar no seu verdadeiro sentido as imagens mitológicas com que esta mensagem está revestida.

Para Bultmann é mito todo esquema de pensamentos que tenta objetivar o divino em linguagem humana, o celeste em palavras terrestres. Tal tradução para a linguagem humana é sempre condicionada pela época e, no caso do Segundo Testamento, emaranhada na cosmovisão mítica daquele tempo, já incompreensível para o homem moderno (pelo que se sente inclinado a rejeitar a mensagem junto com os elementos míticos). A cosmologia mítica apresenta três planos, interpretados como realidades no espaço: em cima o céu, no meio a terra, embaixo os infernos. O plano do meio é sujeito a influências tanto do Deus celestial como dos demônios subterrâneos. Essa mitologia, Bultmann a reduz a duas fontes: o gnosticismo helenístico e os apocalipses judaicos. É um erro (diz Bultmann) tomar por  objetivos esses elementos mitológicos; não precisam ser eliminados, mas devem ser interpretados antropologicamente. Pois as palavras da Escritura contêm uma Anrede, isto é, nelas Deus se dirige ao homem, e o põe em condições para realizar a sua verdadeira existência.

Para dizer que o fato histórico da crucifixão revela o verdadeiro sentido da existência humana (ser arrebatado pelo amor misericordioso de Deus), o Segundo Testamento usará conceitos Mixná mitológicos, descrevendo a cruz como a morte sacrifical do Filho de Deus preexistente, livre de pecados, que satisfez à justiça de Deus. Tais formulações mitológicas, Bultmann não quer tomá-las ao pé da letra; para ele são antes indicações desajeitadas do caráter escatológico da morte de Cristo na cruz (enquanto essa foi decisiva para toda a existência humana). O que na noção bultmanniana de mito merece reparos é certa ambiguidade. De um lado ele quer, por meio deste termo, criticar o erro daqueles que tomam as imagens mitológicas por realidades objetivas (e até certo ponto pode-se estar de acordo, a saber, no caso dos mitologúmenos cosmológicos, como a descida aos infernos, ou no que diz respeito às imagens concretas do simbolismo poético). De outro lado Bultmann percebeu muito bem que os elementos mitológicos do Segundo Testamento (os quais êle opõe de modo exagerado aos elementos estritamente históricos) não podem ser rejeitados simplesmente, e que é preciso penetrar no núcleo doutrinal do mito da redenção. Frisando o aspecto concreto e soteriológico do cristianismo, ele mostra compreender onde está o aspecto formal de todo o mito, a saber, na sua eficácia.

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