Retribuir com o quê?

Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Romanos 11.33-35
Sacrifício de Abraão, Andrea del Sarto em 1527
Por mais que se escorem em um versículo ou outro, logicamente interpretados tendenciosamente fora dos seus contextos, algumas doutrinas vigentes na igreja hoje são profundamente contrárias pensamento bíblico como num todo. Talvez a doutrina da retribuição que contempla um sacrifício seja a mais escandalosa delas.

O princípio desta doutrina, adotado em várias igrejas neopentecostais, a grosso modo diz o seguinte: Jesus fez o seu sacrifício para garantir ao mundo os bens da eternidade, você deve fazer o seu sacrifício para garantir os bens terrenos. Ou seja, se a sua única preocupação se encontra no mundo que está por vir, apegue-se ao sacrifício de Cristo, mas se os seus problemas estão presentes na sua vida atual, você tem que sacrificar e resolvê-los por si mesmo.

Ao procurar entender um pouco desta teologia, lembrei-me de Abraão quando decidiu ir ao monte Moriah sacrificar Isaac. Vejam se não é o mesmo princípio pagão básico. Eu tenho as dádivas que o meu deus pagão se sacrificou para me dar. Esse sacrifício exauriu as suas forças a ponto de não poder me conceder mais dádivas. O que eu tenho que fazer senão fortalecer o meu deus através do sacrifício do melhor que eu possuo? Somente fortalecendo-o eu posso garantir que meu deus continue me conceder dádivas ainda maiores. Posso até estar exagerando quando ofereço a vida do meu filho único, mas o que espero em troca coisas tão grandiosas que compensariam tamanha perda.

Pode ser que eu tenha exagerado na comparação, mas, com certeza, não exagerei ao expor o princípio do que rege essa doutrina. Quando sou desafiado a dar todo o meu salário, meu carro, minha única casa para garantir saúde, prosperidade e projeção pessoal; quando sou intimado a dar parte ou mesmo tudo do que exauri a minha vida trabalhando para conquistar; quando me vejo obrigado a escolher entre os meus problemas atuais e a pretensa vontade de Deus para a minha vida, posso penetrar um pouco no coração do pai Abraão quando se viu tentado a seguir um Deus diferente, ainda com as velhas exigências dos deuses antigos de seu povo.

Dá para perceber imediatamente que a diferença não está na consciência humana, ainda que alguns milênios nos separem de Abraão. Dá para perceber imediatamente que a diferença está nos deuses que povoam a mente dos homens desde os primórdios da humanidade e o Deus de Jesus Cristo. O salmista no salmo 50 já dizia: Eu não preciso dos touros das suas fazendas nem dos bodes dos seus rebanhos. Pois os animais da floresta são meus e também os milhares de cabeças de gado espalhados nas montanhas. Que a gratidão de vocês seja o sacrifício que oferecem a Deus. Ou seja, fica descartada de antemão qualquer necessidade que Deus porventura pudesse ter, que nós, seres humanos, pudéssemos suprir.

Porém, Paulo vai um pouco além. Suas palavras no texto supracitado evocam um princípio ainda mais remoto do que a necessidade imediata que qualquer sacrifício venha a suprir. Paulo fala da mente de Deus e do quanto os seus juízos estão acima dos nossos. Ele fala que não temos conhecimento de Deus suficiente para oferecer-lhe um sacrifício básico aceitável, e, por conta disso, nós não estamos aptos a fazê-lo. Fala também que ainda que estejamos imbuídos da falsa pretensão de que realizamos algo impactante que faça Deus mudar a sua mente, estaremos atrasados no nosso propósito, pois ele, antes de nós já antecipou a sua bênção.

Ainda bem que Abraão foi sensível ao toque de Deus segundos antes de cometer o maior erro da sua vida. É muito provável que se ele tivesse levado adiante o seu propósito, em vez de o Pai da Fé, como é conhecido hoje, Abraão seria chamado o Pai da Retribuição. Teria por isso o seu nome exaltado em vários outros livros da antiguidade, menos na Bíblia. Serviria de modelo a ser seguido para muitos líderes religiosos em todos os tempos, nunca por Jesus Cristo.

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