Bezerro de ouro, Cosimo Rosselli (1439-1507) |
Pelo menos Jeremias não tinha notícia de que fato semelhante acontecia entre os povos pagãos, a não ser, e com bastante frequência, com o seu próprio povo. Sem intenção de querer dizer que os fins justificam os meios, o AT nos mostra que num momento crucial da vida de Jó, sua mulher sugere que ele renegue Deus amaldiçoando-o, o que levaria Jó a se livrar definitivamente do seu mal. Os teólogos chamam a atitude sugerida pela mulher de Jó de eutanásia teológica, pois segundo a crença da época, quem amaldiçoasse Deus morria fulminado em seguida.
Mas apostasia não era somente renegar Deus amaldiçoando-o, era atentar contra tudo que estava contido nas prescrições da aliança. Nas páginas do AT uma aliança com Deus era que algo responsável que era comparado ao matrimônio, e o rompimento desta era considerado adultério. Mas é no NT que a quebra da aliança torna-se complexa e muito mais sutil. Embora o cristão possa deliberadamente de várias maneiras apostatar, infringindo qualquer dos fundamentos do evangelho, é muito mais difícil se detectar tal atitude. Não é uma palavra pronunciada ou uma intenção levada a cabo que joga de imediato uma pessoa nas trevas da apostasia. Talvez seja por isso que a apostasia se tornasse um dos sinais mais alarmantes da literatura escatológica. João, o visionário, desdobra-se em argumentos, imprecações e ameaças para dizer à sua igreja que não é somente sob o rigor da perseguição romana que a fé deles será posta à prova, mas principalmente nas sutilezas. Paulo já tinha feito esta advertência anteriormente: Tende cuidado para que ninguém vos engane com suas filosofias e sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo (Cl 2.8-9).
Exodo 16
Temos aí uma denúncia clara contra a apostasia? Qual seria o tipo ou a forma de apostasia praticada? Neste caso o povo não faz exatamente uma troca de deuses, não existe a intenção de se seguir outro deus, nem de adorar a Ged, Rah ou Anubis, etc. A apostasia, neste caso, se dá pela subversão do projeto libertador de Deus pela escravidão egípcia. A liberdade traz consigo responsabilidades, as quais o povo escravo não estava acostumado. Eles eram forçados ao trabalho vil, mas seu sustento material era providenciado pelos seus opressores. Quando o povo se vê no deserto, tendo que contar apenas consigo mesmo, é tentado a voltar e subjugar-se novamente a Faraó. O povo não queria saber do pão minguado, que é tudo o que a liberdade podia oferecer no momento, mas isso não é tudo. Temendo uma retaliação violenta dos opressores, eles pedem a Deus que os acompanhe na sua volta à escravidão. Eles tinham saudade das panelas de carne e
da aparente comodidade que o Egito representava, mesmo que para isso fossem
reprimidos e tivessem que abrir mão do exercício da vontade própria. Para eles
era melhor a fartura na opressão que a miséria na liberdade. Eles não queriam
servir ao Deus Libertador, queriam sim um deus que os servisse na escravidão.
Esta é uma apostasia bastante evidente em nosso meio também nos dias de hoje.
Aceitar o mau acordo em detrimento de uma boa briga, como diz o ditado popular.
Assim como o povo recém liberto, temos verdadeiras ânsias de voltar à
escravidão, seja ela de qualquer tipo. Basta que para isso detectemos a perda
de alguma vantagem, quando a liberdade nos é proposta.
Em Amós 2.8 lemos o seguinte: “Também se deitam junto a qualquer altar sobre roupas empenhadas, e na
casa de seu deus bebem o vinho dos que têm sido multados.” A quem se refere
esta palavra deus com “d” minúsculo? O texto fala do Deus verdadeiro, mas que
se sente como se fosse um simples ídolo, quando é homenageado com ofertas que
são fruto da exploração e da injustiça.
Ex. 32.1-7
I Rs 12.26-33
Jo 20.19
At 5.1-10
Este é um pecado contra o caráter libertador
de Deus. De um deus que não se deixa levar por vantagens, que não aceita
acordos, que não se manifesta através de meias mediadas, mesmo quando essas se
mostram eficazmente benéficas. Estas são características dos ídolos, dos falsos
deuses que recebem oferendas para desviar o olhar da iniquidade do povo. Deuses
que não se importam com a moral, apenas com sacrifícios.
Ex. 32.1-7
Este é o conhecido texto do bezerro de ouro.
E as perguntas são as mesmas: Temos aí uma denúncia contra a apostasia?
Qual seria o tipo ou a forma de apostasia praticada? Os hebreus não eram
burros. Eles sabiam que aquele bezerro construído há dez minutos não era o deus
que os libertara do Egito. É bem mais provável que o bezerro representasse
Moisés, que havia subido ao monte e os havia abandonado no vale das incertezas.
Até então eles não se importavam de não verem Deus, eles tinham Moisés. Aquele
povo estava recém liberto de um longo período de escravidão em um país onde o
que mais importava era o visual. Quando se fala em Egito nós nos lembramos
imediatamente de pirâmides, e cada Faraó queria fazer maior e mais vistosa que
o seu antecessor, da esfinge. Até o mundo dos mortos para eles era visível,
eles o faziam através da múmias. Este povo é chamado a uma nova realidade. Uma
realidade onde o que é mais real, que é Deus, é justamente invisível.
O pecado é contra a transcendência de Deus.
Nesta caso não importa tanto a questão visível-invisível, ou mesmo se tratar de
um culto a um outro deus. O que prevalece é que o bezerro fabricado em ouro,
que é o símbolo máximo do poder, representava a sede do poder de Deus. Eles
estavam circunscrevendo, limitando o poder de Deus à presença e aos limites do
alcance da visão da estátua e ao seu valor em ouro. Esta em um sinal de que
apostasia pode se dar no culto ao Deus Verdadeiro, desde que considerados
apenas os atributos de Deus que nos são convenientes. O rev Rúben Alves,
analisando a passagem do fariseu e do publicano ele diz: O fariseu se ajoelhou diante do Deus Verdadeiro e orou a um ídolo,
enquanto que o publicano na sua humildade, se ajoelhou diante de um ídolo e
orou ao Deus Verdadeiro.
Falemos sobre os ídolos.
O que são os ídolos? Por que são fabricados? Quem os fabrica? Que vantagens existem?
Amuleto – objeto material que tem poderes
especiais. Fetiche – objeto material em cujo interior
existe um espírito que lhe confere poder. Ídolo – é também um fetiche cuja forma
representa o espírito ou sua maneira de agir. Quem fabrica ídolos tem poder. Este poder é
transmitido ao ídolo que lhe retribui com mais poder. Depende exclusivamente do
poder de quem fabrica o poder do ídolo. Os profetas denunciavam que este poder
não era divino e bom, e sim humano e mau.
I Rs 12.26-33
Os dois bezerros de ouro.
O cenário é o cisma. A divisão do povo
hebreu em 10 tribos do norte e 2 tribos do sul. Ao morrer, Salomão não preparou
devidamente o seu sucessor. Roboão, seu filho, conseguiu oprimir ainda mais o
povo com impostos. As tribos do norte, já se achavam esgotas financeiramente e
se rebelaram, comandadas por Jeroboão, deixando de se subjugarem ao rei de
Jerusalém. Estabeleceram sua capital em Samaria, e dali coroaram Jeroboão seu
rei. Mas havia um problema. O templo ficava em Jerusalém, e seguindo o seu
costume, o povo ia constantemente a Jerusalém para adorar a Deus. Assim se dá o
ocorrido. As mesmas perguntas de sempre: temos aí uma
denúncia contra a apostasia? Qual seria o tipo ou a forma de apostasia
praticada?
O problema não era de cunho religioso. Havia
ainda nas tribos do norte a aliança com Iahveh, o problema era político.
Jeroboão não queria perder o seu poder e lançou mão de um artifício religioso.
Em vez de lutar contra a divisão, ele preferiu garantir a sua coroa. O que
aconteceu? O povo dividido virou presa fácil na mão dos impérios vizinhos. O
cisma aconteceu em 721 a .C.,
em 587 o reino do norte foi varrido do mapa pelos assírios. O povo foi
sacrificado no altar que ele mesmo havia construído.
Existe aí uma tentativa de manipulação de
Deus, mas para isso eles tem que torná-lo material, porque é muito difícil se
manipular um espírito, ainda mais o Espírito de Deus, que de forma alguma aceitaria
emprestar seu nome a tal arranjo. Esta é apostasia que se revela quando
tentamos, através de artifícios da religião e da fé, contornarmos situações as
embaraçosas da nossa vida.
Jo 20.19
Temos aí uma denúncia contra a apostasia? Qual seria o tipo ou a forma de apostasia
praticada? Quando o evangelista faz questão de
registrar uma falha no comportamento de todos os discípulos denunciando a sua
covarde reclusão por medo dos judeus, o que podemos pensar?
Em Mt 10.28 Jesus já os havia alertado
quanto a este perigo: “Não temais os que
matam o corpo, e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer
perecer no inferno tanto a alma como o corpo.”
Primeiramente nós não devemos confundir ter
medo com apostatar. A situação era de perigo tanto por parte dos judeus quanto
por parte dos romanos. A violenta e injusta morte do seu mestre ainda estava
bem latente em seus pensamentos. O Espírito Santo ainda não havia sido
derramado, e somente através dele é que a ousadia pode ser manifestada. Mesmo
depois do derramamento do Espírito, havia temor entre eles, e muito bem
fundamentado, em virtude das perseguições de se seguiram. O Espírito Santo os
dava coragem, mas não os anestesiava, ou pensamos nós que eles não sofreram
mutilações e violências como nos narra o capítulo 11 de Hebreus. E exigência
era de ser fiel mesmo diante da morte, mas em momento algum os encorajou ao
suicídio ou à morte prematura e voluntária.
Existem muitas falhas de nossa parte quando
julgamos as atitudes dos nossos irmão do passado. Ou somos complacentes demais
com uns buscando somente os seus bons momento, ou executamos sem piedade outros
pela simples leitura de um texto, sem o menor aprofundamento no contexto. O
caso de Sansão e Dalila pode muito bem exemplificar isto.
At 5.1-10
Talvez este seja o mais enigmático de todos
os textos do NT, e justamente pelas diversas interpretações que lhe são
sugeridas, é que nos concentrar exclusivamente no aspecto que nos interessa
para o momento.
A ruptura do capítulo justamente nesta
narrativa, ajuda um bocado na confusão geral. O final do capítulo 4º narra a
convivência dos cristãos no começo da igreja. Viviam em comunhão, eram um só
coração, uma só alma. A narrativa desce a detalhes da vida econômica da igreja
primitiva. Vendiam o que possuíam e entregavam aos apóstolos, e repartiam tudo
em comum. Eu quero frisar que esta é uma característica da Igreja de Jerusalém,
ou seja a 1ª igreja cristã. Também não devemos nos esquecer que a expectativa
era de que Cristo voltaria ainda naquele mês ou no mais tardar no seguinte.
Tudo colaborava para a firme convicção no final dos tempos, onde Jesus voltaria
e resgataria do mundo a sua igreja.
Dentro deste quadro aparecem Ananías e
Safira que são contados entre os discípulos dos apóstolos. Depois do
deu-não-deu, vendeu-não-vendeu, as nossas perguntas pertinentes:
Temos aí uma denúncia contra a apostasia? Qual seria o tipo ou a forma de apostasia
praticada? Para darmos resposta a essas questões vamos
investigar as outras questões que o próprio texto levanta: “Enquanto
o possuías o terreno, não era teu? E se
fosse vendido, não estava o valor em teu poder? Por
que é que combinastes entre vós provar o Espírito do Senhor?”
Provar aí não é sinônimo de experimentar mas
sim de testar, de colocar a prova. O casal quis pagar, ou no caso, não pagar
para ver. Eles queriam saber o quanto eles poderiam estar dentro, estando fora.
Percebe-se que neste conjunto dos capítulos 4, 5 e 6 do livro dos Atos dos
Apóstolos essa interação entre a comunidade cristã e os demais não cristãos. Já
nesta altura, passados os confrontos do Pentecostes, aquelas acusações de que
estavam bêbados, os cristãos haviam conquistado o respeito e a estima dos
habitantes de Jerusalém. Em At 5. “E
muitos sinais e prodígios eram feitos entre o povo pelas mãos dos apóstolos. E
estavam todos de comum acordo no pórtico de Salomão. Dos outros, porém, nenhum
ousava ajuntar-se a eles; mas o povo os tinha em grande estima; e cada vez mais
se agregavam crentes ao Senhor em grande número tanto de homens como de mulheres,
a ponto de transportarem os enfermos para as ruas, e os porem em leitos e
macas, para que ao passar Pedro, ao menos sua sombra cobrisse alguns deles.”
Ou seja não somente a comunidade cristã respeitava e tinha compaixão do povo,
como, da mesma forma o povo os queria bem. Ananias e Safira talvez estivessem
ainda no grupo dos admiradores, ainda eram discípulos, mas, ao mesmo tempo
queriam fazer parte do grupo dos admirados, e escolheram o por caminho. Se eles
tivessem pegado a Bíblia e fossem para as praças, como fazem alguns. Ou se
prostrassem à porta dos templos ou nos altares para fazer orações intermináveis
em alta voz. Ou ainda se intitulassem profetas, bispos, apóstolos e posassem à
frente das congregações como enviados de Deus, tudo bem. Estariam enganando a
eles mesmos e a alguns incautos. O que eles não podem, e ninguém pode, é tentar
enganar ao Espírito Santo de Deus.
No culto onde meu filho foi batizado, eu tive a
alegria de trazer uma mensagem que fala das opções de escolha da graça de Deus,
baseada no texto de I Cor que fala que Deus escolhe as coisas fracas loucas e
vis para envergonhar as outras. Durante bastante tempo eu não dei exemplo do
que seria uma coisa vil envergonhando outra, principalmente no momento
presente. Na Bíblia temos inúmeras. Raabe talvez seja a mais enfática delas.
Pela televisão eu acompanhei o julgamento de
um traficante, assassino, sequestrador e mais o que vocês quiserem. E aquele
homem perguntado pelo juiz sobre a sua culpa nos crimes respondeu: Fui eu
mesmo. E aquele testemunho me envergonhou quando me lembrei que tantas vezes me
oculto atrás dos outros, de desculpas ou de qualquer coisa para me livrar das
minhas culpas. Me lembrei de como nós cristãos, principalmente alguns
sacerdotes se esconde atrás das suas vestes e atitudes diferenciadas, das suas
batinas e dos seus coletes clericais para mentirmos ao Espírito santo de Deus.
Esta não é somente uma apostasia é a
tentativa mais sórdida de negar o caráter de verdade e de justiça de Deus. Eu
quero pertencer à comunidade tal, mas não quero seu encargos, eu estou falando
principalmente para mim.
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