Farinha pouca, meu pirão primeiro

Jugo desigual

Segundo o compositor Bezerra da Silva, este velho ditado é do tempo do cativeiro, mas continua atualíssimo, uma vez que por trás destas palavras ecoa um profundo senso de egoísmo e uma notória indiferença para com a necessidade do próximo. Porém, a internet deu outro significado para ele: Não é necessariamente egoísmo, pode ser também visto sob o prisma da prudência, de se antecipar a uma possível escassez, enquanto a cigarra canta, a formiga tá com seu pirão preparado.

Dá para imaginar este enredo se desenrolando em face à eleição presidencial? A minha necessidade deve vir em primeiro lugar, depois a situação em que se encontra o país? Vale a pergunta por que os programas de governo  falam dos mais diversos assuntos: Feminismo, kit gay, armamento, aborto e quase nunca abordam os temas mais urgentes, tais como: Emprego saúde e segurança? Por outro lado, não vejo da parte dos eleitores ninguém querendo se informar sobre a plataforma política do candidato para as questões que determinam todas as demais. Talvez seja pelo fato de que as inúmeras desilusões que temos sofrido tenham feito com que fiquemos confusos entre livre o arbítrio, o determinismo e o fatalismo. Ou seja, como já perdemos totalmente o controle sobre os quesitos essenciais, tentamos desesperadamente preservar alguns poucos secundários.

 Agora, mais do que nunca, precisamos definir em que time vamos jogar. Não falo aqui de política partidária, em candidato petralha, bolsomino ou cangaciro, mas sim da responsabilidade do voto. Meu voto será a expressão da minha consciência crítica, será servo do determinismo instaurado ou vítima da fatalidade que trouxe o caos? Embora eu já tenha sido rotulado por estes adjetivos, situo-me orgulhosamente no time dos que nem sabem ao certo onde está o seu título de eleitor. Por tudo isso, passo a apresentar a minha hipótese que, segundo o meu parco conhecimento do evangelho, deduz que tais critérios de avaliação são totalmente irrelevantes para o pleito de que se aproxima.

 O voto determinista.

Determinismo é a doutrina que ensina que tudo no universo está limitado às leis imutáveis da Natureza. Ou seja, todos os acontecimentos e ações humanas são predeterminadas pela inflexibilidade da Natureza, sendo a liberdade de escolha uma mera ilusão. Curioso é que muitos evangélicos acreditem assim, porque veem a Natureza como uma força idônea que avassaladoramente joga com o destino das pessoas daqui prá lá e de lá pra cá. Em primeiro lugar precisamos saber que o substantivo natureza sequer é cogitado na Bíblia, então não é de lá que deriva essa ideia. Em segundo lugar a Bíblia dá a esse conjunto de leis naturais o nome de Criação Divina. A criação realizada e consumada por Deus não tem vontade própria, não se rebela ou mostra insatisfação. Ela foi entregue ao homem para que a administre. As Escrituras se valem para tanto do verbo dominar. Dominar encerra tanto o domínio propriamente dito, como também a denominação, que não é somente dar o nome, mas principalmente especificar a função de cada elemento.

 É aqui que se expõe claramente a nulidade do voto determinista. Nada está determinado. Ao ser humano foi dada suficiente capacidade de gerir os recursos naturais. Quem determina guerras, fome e doenças transmissíveis são as pessoas, não é o Diabo, nem Satanás, muito menos a Natureza ou qualquer coisa que o valha. Afinal de contas, quem determina quem vai ter o poder de determinar é o seu e o meu voto. Esse voto não pode assumir aspectos interesseiros, tais como: De não votar em um candidato porque ele não tem chance de ganhar. O termo ganhar é fundamental para que entendamos a característica desse eleitor. Para ele a cédula eleitoral se transforma em um volante de loteria, em que vai apostar em quem vai ganhar e a consciência crítica que se dane. Afinal: Farinha pouca, meu pirão primeiro.

 O voto fatalista

Por definição fatalismo e determinismo podem ter entre si muitas semelhanças, porém o determinismo se fundamenta nas causas que se situam na esfera do humano, já o fatalismo tem uma órbita superior. Como diria Nelson Rodrigues, está instalado confortavelmente na casa do Sobrenatural de Almeida.

 Assim como o determinismo, o fatalismo é algo supostamente irreprimível, posto que está escrito nas estrelas. Segundo asseguram os seus incontáveis adeptos, o voto fatalista detém algumas prerrogativas inatas. O candidato X vai ser eleito porque forças além do nosso controle e além da nossa imaginação assim o decretaram. O problema é que, especificamente nessa eleição, os fatalistas estenderam o espectro do seu fatalismo para além das estrelas. Estão incluindo agora o texto das Sagradas Escrituras. Nostradamicamente estão fazendo cálculos baseados em capítulos e versículos apocalípticos, de modo que o resultado aponte para o número de um candidato. E não param por aí, retiram da boca dos escritores bíblicos argumentos que respaldem seus delírios. Desse modo, por constarem nos escritos bíblicos, seriam assim inquestionáveis.

 Levianamente incorrem em uma série de imprecisões. Em primeiro lugar que a Bíblia não é um livro cabalístico. Os números nela contidos são meramente simbólicos e não têm propriedades para emanar qualquer poder quando invocados. Para ser mais incisivo, o número que nela causa maior perplexidade, 666, João do Apocalipse faz questão absoluta de dizer que número de homem, deixando claro que até mesmo o número da misteriosa besta não transita na esfera sobrenatural.

 Em segundo lugar esta é uma prática que a Bíblia abomina desde os seus primórdios. Quando o povo de Israel estava para tomar posse da Terra Prometida, uma das ordenanças mais categóricas foi essa: Quando entrares na terra que o Senhor, teu Deus, te der, não aprenderás a fazer conforme as abominações daqueles povos. Não se achará entre ti quem faça passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; nem encantador, nem necromante, nem mágico, nem quem consulte os mortos; pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao Senhor.  Deuteronômio 18.9-12 Ou seja, em tais circunstâncias a Bíblia não permite  sequer que se nomeie entre o seu povo pessoas adeptas à prática da adivinhação, assim como não autorizaria que se faça em seu nome prognósticos de qualquer sorte, inclusive eleitoreiros. Convém lembrar a eleitores e elegíveis que foi justamente por causa dessa prática abominável que os cananeus foram expulsos de suas terras.

 Mas ainda não é aí que se encontra o cerne da questão. Se a Bíblia fosse realmente levada em conta, essas pessoas veriam que ela aponta em uma direção diametralmente oposta a tudo que está se configurando no cenário nacional. Nada que esteja escrito nas estrelas ou em qualquer outro lugar pode minimamente ofuscar a mensagem da novidade que a Palavra de Deus nos traz. Jeremias, no livro das suas lamentações, diz que as misericórdias do Senhor se renovam a cada manhã. Portanto, absolutamente nada em nossa vida está fatalizado ou determinado, pois Deus não tem uma agenda que consulte para decretar a sequência dos acontecimentos, mas tem sim uma perspectiva inédita que se descortina a cada nova situação para nos desafiar.

 Que esteja plenamente convicta a igreja que o caminho, para aqueles que querem se valer das Escrituras para orientar o seu voto é sempre o caminho do novo, do nunca visto, do jamais imaginado e do sequer cogitado. Pois, o que ninguém nunca viu nem ouviu, e o que jamais alguém pensou que podia acontecer, foi isso o que Deus preparou para aqueles que o amam. I Coríntios 2.9 

 O voto livre

A semântica diz que livre arbítrio é a possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante. Peço licença para me valer de um texto bíblico que pode muito bem ser considerado pouco ortodoxo para orientar qualquer discussão sobre eleições ou mesmo sobre escolhas pessoais. É texto do evangelho de Marcos 5.21-43 que narra a ressurreição da filha de Jairo. Para almejar algum sucesso nessa analogia vou me colocar no lugar de Jairo.

 Jairo vive a aflição da morte iminente da sua filha de doze anos que sofre de um mal para o qual todos os recursos da medicina de então se mostraram ineficazes. Em uma atitude impensável para a aristocracia judaica, literalmente se joga aos pés de Jesus implorando pela vida da menina. Guardadas as devidas proporções, essa narrativa pode muito bem espelhar a patologia de extrema morbidez que vive o Brasil nos dias de hoje, para a qual indistintamente todos os regimes que governaram este país ao longo da sua história se mostraram ineficazes. Vamos imaginar que interrompendo o já dramático cenário, chegam alguns empregados deterministas dizendo: Sua filha morreu, não é preciso mais incomodar o Mestre. Não tem mais jeito. Nada mais pode ser feito. Tudo está determinado. Está mais do que claro que quem tem amigos assim não precisa de inimigos. Quem pensa que a vaca foi pro brejo, que a casa caiu e que o Brasil bateu a caçoleta está nesse mesmo nível. Esses não têm capacidade alguma para orientar o voto de quem quer que seja. Nesse momento fatídico Jairo é socorrido pelas palavras de Jesus: Não seja possuído pelo medo. Seja possuído pela fé. Uma pausa oportuna para Jairo exercer uma racional ponderação.

 A caminhada de Jesus é interrompida por uma mulher impura que indevidamente toca em Jesus implorando pela cura de uma doença que a aflige há 12 anos. Jesus para, cura a mulher e, sem demonstrar ansiedade, mantém um diálogo com ela. É aí que Jairo se desconsola, pois seu pirão era muito mais urgente do que o dessa mulher, uma vez que que está doente há doze anos podia muito bem esperar mais um pouco, mas a vida da sua filha não. Jesus nos ensina a não ter pressa para tomar uma decisão, por mais urgente que ela se apresente.

 Mais na frente acontece o encontro com as carpideiras, autênticas profissionais da fatalidade e da morte. Para o extremo desespero de Jairo elas asseguram que a menina está mesmo morta, posto que morte era uma coisa que elas entendiam, talvez até melhor do que Jesus. É aqui que o fatalismo é confrontado. O caos não é a única alternativa. A morte não tem e nunca terá a última palavra. E o mais importante, jamais a resignação com a fatalidade poderá resolver situações como esta.

 Jesus na parábola viva de Jairo nos ensina muita coisa e esse seu ensino se aplica às situações mais corriqueiras da nossa vida. Ensina que essa não é a hora de fazer a escolha de A por medo de B. Não se deixar levar pelo determinismo das circunstâncias. Ele a prova cabal de que, quando as circunstâncias estão contra Deus, pior para as circunstâncias. Diz com todas as letras que Deus fez a sua parte e está convocando seu povo para fazer a sua. Ele mostra uma coisa importante: A vitória não é para ser alardeada. Deus não soma créditos, assim como não cobra débitos. A menina enfim é ressuscitada e Jesus não a esfrega na cara o engano deles. Sua preocupação continua sendo a mesma do início da narrativa, a mesma que o levou a socorrer aquela que necessitava de socorro. A sua primeira ordem tão logo restaurou o caos, foi também em favor da menina, para quem o limiar crítico já havia sido transposto. Em consonância com a naturalidade da sua atitude, ele diz apenas: Olhe, a menina acordou. Ela está com fome. Dê comida pra ela.

 Não sei esse texto transpôs o limite do razoável, mas não posso deixar de perceber que a farinha, assim como nosso voto, quando livres das tendências negativas e quando administradas com sensatez, são mais do que suficientes para o pirão e para o bem estar de todo mundo, inclusive daqueles que pensam que nada mais pode funcionar, a não ser o extremismo radical.

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