Circuncisão de Isaque, Baumgartner (1850-1924) |
O desconhecimento que Paulo tinha daquela realidade vigente era um complicador a mais, uma vez que tomar partido de um grupo em detrimento do outro causaria a ruptura total da igreja, e isso era o que o apóstolo menos precisava. Entretanto, mesmo que municiado de parcas informações, baseando-se na sua experiência com outras igrejas, foi extremamente preciso em detectar aqueles que maldosamente estavam tirando partido da situação para imporem aos demais uma doutrina que servisse aos seus interesses pessoais, egocêntricos e lucrativos. Contra estes, mesmo à distância, Paulo declara toda a sua intransigência: Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles, porque esses tais não servem a Cristo, nosso Senhor, e sim a seu próprio ventre; e, com suaves palavras e lisonjas, enganam o coração dos incautos. Pois a vossa obediência é conhecida por todos; por isso, me alegro a vosso respeito; e quero que sejais sábios para o bem e símplices para o mal. E o Deus da paz, em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás. (16,17-20).
Paulo jamais pode ser confundido com um teólogo de gabinete. Sua mensagem tinha ligações profundas e estreitas com a sua prática, e não seria na Carta aos Romanos que ele mudaria o seu estilo. Podemos concluir então que a interferência nos problemas locais abordados na carta, não era nem de longe o seu objetivo, mas que ele visava, antes de tudo, o seu apostolado missionário. É a partir de Roma que Paulo começa a perceber os problemas da expansão missionária, e o quanto esta ameaça a unidade da igreja. É a partir daí que ele começa a se perguntar: Poderia a Igreja de Roma fazer parte do corpo de Cristo, estando ela geográfica e doutrinariamente distante da igreja mãe, conquanto recebesse dela apenas breves notícias? Poderia esta igreja transformar-se na base espiritual, material e estratégica em seu intuito de evangelizar a Espanha, sem ferir a autoridade da Igreja de Jerusalém?
Não seria difícil para o experimentado apóstolo responder a este desafio imediato com uma doutrina que traduzisse a necessidade de adaptação às novas condições. Somente isso faria com que as várias comunidades que formavam a Igreja de Roma estabelecessem um tipo de organização que mantivesse a unidade interna, e a projetasse exteriormente como uma igreja sólida e coerente. Demonstraria respeito e submissão ao colégio dos Doze apóstolos e à tradição apostólica de Jerusalém. Como poderia também, com os olhos voltados para a desproporcionalidade entre as duas cidades, fazer de Roma a verdadeira capital do Cristianismo gentílico, o que ia ao encontro das aspirações tanto de judeus cristãos como de cristãos de origem pagã.
Mas não é isso que acontece, e sim efetivamente o contrário. Em vez de apresentar soluções externas, Paulo vai buscar afirmação na realidade mais profunda que essa igreja apresentava: a quase impossível convivência entre os dois grupos de cristãos de Roma. Utilizando-se do mistério da encarnação de Cristo que derruba de vez a barreira religiosa e racial erguida pelo legalismo mosaico, ele faz a igreja enxergar que pela fé, todos indistintamente usufruem das promessas feitas a Abraão, pelo batismo estão imediatamente incorporados ao grande rebanho de Deus, e igualmente orientados e consolados pelo Espírito Santo. A esta incipiente igreja Paulo apresenta a sua principal doutrina, a justificação pela fé, que como condição fundamental exige a unidade dos cristãos acima da uniformidade de princípios, e a continuidade da igreja como projeto de Deus para salvar o mundo.
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