Tomada de Jerusalém, ilustração de 1099 |
Salmo 44
Ainda que sincera, a oração daquela senhora pode servir como um questionamento justo diante de Deus? Não estou nem de longe querendo dizer que o povo sofrido é o responsável por essa e por tantas tragédias. O que quero dizer, que este é um mal que poderia muito bem ser evitado, caso os nossos governantes cuidassem devidamente da segurança. Estão aí Friburgo e Teresópolis que depois de mais de um ano, absolutamente nada foi feito, e a população treme de medo com qualquer chuva. Caso a igreja não fosse omissa em denunciar a exploração imobiliária, não negligenciasse a sua luta contra um poder econômico que condena seres humanos a viverem em situações de risco anunciado. Caso não tentasse ludibriar o povo com promessas de livramento incondicional, coisa que jamais Deus se comprometeu em garantir.
A oração daquela senhora contém um atenuante que tira de imediato o ímpeto das nossas perguntas iniciais: Por que Deus não vê? Por que não faz nada? Por que não atende? Que são as mesmas perguntas feitas no salmo. Na sua comovente oração ela pede: Senhor, não permita que o rio inunde as nossas casas, de novo. Ou seja, não foi a primeira vez que o rio Itajaí ultrapassou o seu limite, e provavelmente não será a última vez que ele ultrapassará em muito o nível das suas águas. Contrariando aqui a hipótese de muitos ambientalistas que apontam a natureza vingativa, como causa do acontecido, o rio só está fazendo aquilo que foi designado fazer de tempos em tempos. Assim como as tragédias do povo judeu, a de Santa Catarina foi uma tragédia anunciada com muita antecedência, estava prevista e poderia ser evitada, assim como muitas que estão prestes a acontecer. E isso faz do das palavras do salmista um salmo de denúncia, uma crítica declarada à situação vigente, e não como pensei anteriormente, um salvo de reivindicações.
Então o salmista não é o cara de pau que eu pensava. Ele não está fazendo uma oração e sim uma denúncia. A Bíblia é fantástica justamente por isso. Muito antes da psicologia moderna, da filosofia e da sociologia, já detectava que a verdadeira raiz do problema estava muito além da percepção nata e do contexto imediato que os seus escritores viveram. Ele vai fundo nas questões que normalmente são consideradas secundárias, para expor a realidade nas suas mais complexas causas e efeitos. O salmista não é tão inconsequente quanto eu pensava. Mesmo sem ter lido Freud, teve a lucidez suficiente para encontrar nos erros de julgamento das gerações passadas, os motivos que levaram a sua geração a pensar que Deus tinha a obrigação de livrá-los de todo mal em qualquer circunstância.
Observem bem o que ele diz nos oito primeiros versículos. Seus pais realmente contaram como Deus os abençoou no passado, como lhes foi generoso, como lhes propiciou vitórias sobre o impossível. Contaram a mais bela história jamais contada, de como eles foram libertos do Egito, que era a maior potência bélica conhecida, sem que nenhum deles tivesse que desembainhar uma única espada. Mas o que os seus pais não contaram, foi o quanto isso lhes custou em renúncias, em negações, em perseveranças, em resistência a tentações de todas as ordens. Nunca disseram a seus filhos que a graça de Deus é de graça, mas que não é barata.
Estou convicto de que este é um mal que acomete a todas as gerações de cristãos, que contemplam uma vida tranquila, sem ter que passar por muitos tropeços e sobressaltos. Que vive um cristianismo sem perseguições ou mordaça. Essa nova geração de cristãos está aprendendo de nós que as bênçãos de Deus são consequências naturais. Que Deus simplesmente abre as janelas dos céus e derrama incontáveis bênçãos sobre todo aquele que se diz seu. Os cultos atuais são a prova cabal desta realidade. Não se canta mais que somos miseráveis pecadores carentes da graça. Agora somos adoradores. Ninguém mais é vaso de barro e nem tenda de pano. Somos ministros de louvor.
É isso que se canta hoje em dia nas igrejas, não as apenas crianças, adultos também. Tem por aí um hino cuja letra diz: Não sou apenas servo. Desculpem-me a ironia, porque a situação é trágica. De onde esse sujeito tirou a ideia de que ser servo de Deus é algo que pode ser considerado pequeno, inferior, que se possa dizer que é apenas? Servo de Deus não é quem quer ser, ou quem se diz ser, e sim quem ele escolhe, quem ele aponta. E que ninguém busque essa honra com muitas expectativas não, porque os servos de Deus nunca são chamados para fazerem aquilo que em seu coração se propuseram fazer. É sempre mais longe, mais difícil e mais penoso do que qualquer um pode imaginar. É uma vida nada fácil, perguntem a Maria, mãe de Jesus, a Paulo, a Jeremias ou a Amós.
Estamos criando uma geração contemplativa da glória de Deus, exatamente igual a do salmista. Uma geração que diante do infortúnio não reconhece a sua pequenez, e tem a ousadia de questionar a sua soberania, sem qualquer argumento válido. Uma geração de cristãos nanicos, como dizia um professor do Seminário, que à primeira provação ou ao menor sinal de uma adversidade, muda o pastor, troca de igreja, isso, quando não renega de vez a sua fé. Uma geração que só enxerga os fins, sem nunca ponderar sobre os meios que foram necessários para obtê-los. Que não leva em conta quantos joelhos se dobraram diante da Divina Vontade, quantas línguas confessaram fidelidade diante das mais terríveis ameaças. Isso tudo está acontecendo, porque nunca contamos aos nosso filhos as muitas vezes que vimos os nossos pais clamaram a Deus em prantos, o quanto eram copiosas as suas lágrimas, o tamanho da sua aflição enquanto semeavam, para que nós pudéssemos colher com alegria, os feixes que estamos colhendo.
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