Richard Harris em cena do filme Abraão de 1993 |
Em seu livro
A Origem da Ideia de Deus, publicado em 1912, Wilhelm Schmidt fala de um
monoteísmo primitivo, de um deus que não possui efígie, nem templo e nem exige
culto ao seu nome. Um deus que observa, premia e pune os homens pelas suas
atitudes, mas que ainda assim, é estranhamente ausente ao seu cotidiano. Ao
contrário do que maioria pensa, Smidt afirma que a humanidade nasceu monoteísta
e não cultuando forças da natureza e fenômenos cósmicos por ignorância ou medo.
Algo parecido com a origem obscura de Melquisedeque. Gn 19.12
Somente mais
tarde, com o aperfeiçoamento das técnicas agrícolas, os povos tenderiam a
adorar as primeiras divindades representadas por imagens. Curiosamente esta
imagem não era de um deus, e sim de uma deusa. A imagem da mãe fértil é quase
que um consenso em todas as culturas do mundo. Seu culto estava intrinsecamente
ligado à fertilidade do solo e dos animais. Após este período, os humanos
perceberam que o ciclo da natureza – nascimento, vida e morte – era um fator
determinante na produção agrícola, e associaram a este ciclo a concepção dos
seus deuses.
Celebrando o
seu nascimento ou renascimento como uma vitória sobre o caos original. Nos
intervalos elegia-se um deus carnavalesco para que o caos ficasse bem definido.
Perceberam também que quando aconteciam fatos em uma determinada ordem, os
resultados lhes eram bastante favorável. Caso a ordem fosse subvertida, as
consequências seriam trágicas. Deste modo, passaram a se aproximar do invisível
e do desconhecido, para que, de alguma forma, a ordem benéfica fosse
assegurada. Ou seja, o culto aos deuses especializados se iniciou por
interesse, para que os deuses trabalhassem em seu favor, e não por medo ou
ignorância, afirma Schmidt.
É neste emaranhado
de deuses especialistas e regionais que nasce Abraão. Talvez no lugar mais
impróprio para tudo começar, na pomposa cidade pagã de Ur, na Caldéia. E é este
Abraão, cuja obstinada crença em um deus invisível e moral, que vai mudar para
sempre a civilização. Para a já comentada aproximação com o invisível, Taré,
seu pai, era fabricante de ídolos (Gn 31.17).
Deuses da
fertilidade, do amor da guerra e etc. Deuses que não se importavam com a
conduta das pessoas, desde que sacrifícios e louvores lhes fossem dirigidos.
Conta-nos o Midraxe (coletânea de interpretações da Bíblia segundo os rabinos)
que Taré havia estocado uma boa quantidade de imagens quando Abraão, ainda
menino, quebrou-as todas. Irado, Taré perguntou a Abraão como aquilo
acontecera. O menino respondeu: “Eles brigaram entre si para ver quem era o
mais poderoso”. Seu pai logicamente não lhe deu crédito e disse: “Estas são
apenas imagens feitas de barro, sem atributos especiais ou vontade, e nada
podem por si mesmas.” Abraão imediatamente retrucou: “Se elas nada podem por si
mesmas, então por que venerá-las?” O Midraxe assegura que de alguma forma,
Abraão sozinho, por razões que jamais poderemos supor, pressentiu que aquele
não era o caminho, e ouviu uma voz diferente. A voz de Deus que está acima da
natureza.
Pode perecer
algo inusitado, mas o monoteísmo em Israel não é pioneiro e muito menos único
na antiguidade. Durante o reinado do faraó Aquinaton, pai de Ramsés I, o Egito
experimentou, não somente a entronização de um Deus único, mas a execração de
todas as outras divindades.
No início
temos Abrão e Sarai, que por intervenção divina tiveram seus nomes mudados para
Abraão e Sara. Eles moravam em Ur com sua família, e ao contrário do que se
diz, não saíram de lá por ordem de Deus, mas acompanhando uma grande migração
que acontecia naquela época Gn 11.31- 12.1. Segundo a Bíblia, Abraão viveu em
Harã até os seus 75 anos, idade que tinha quando, aí sim, Deus falou com ele
pela primeira vez. “Sai da tua terra, da tua parentela...” Muitos dizem que foi
neste momento que começou a fé judaica. Neste período era comum se contar com a
proteção de um deus particular. O deus do fulano. Um deus que tinha poucos
poderes, porém, uma responsabilidade enorme. Como os anjos da guarda de hoje.
Para outros a fé judaica começou mais tarde, quando o servo de Abraão
reconheceu como seu o deus de Abraão, Iahveh, O Senhor. Gn 24:12. Mas de todo
modo não podemos pensar na fé como algo monolítico, de concepção rígida. Abraão
foi chamado Pai da Fé, não porque conhecia a ortodoxia da doutrina de Deus. Não
há indícios na Bíblia de que Abraão tenha ouvido falar de Adão ou de Noé. Ele
conheceu Deus a partir da breve revelação que tivera do próprio Deus. Não
podemos comparar a sua fé com a do apóstolo Paulo, por exemplo. Ele obteve este
título não por seguir um credo ortodoxo, mas porque confiou em Deus e em suas
promessas por mais absurdas que elas pudessem parecer.
Abraão deixa
para trás seu seguro mundo familiar; crê que Sara vai conceber, mesmo sendo
idosa; e assume o difícil encargo de muitos religiosos: ouvir vozes sem
conseguir prová-las. Hoje podemos dizer que Abraão foi um grande homem, mas não
seria assim se fôssemos seus vizinhos em Canaã. Deveria ter
sido muito duro para ele andar errante atrás da voz de um Deus invisível. Um
outro fato louvável é a sua credibilidade junto à sua família. Eles não ouviram
as vozes e acompanharam Abraão mesmo sem saber para onde. Se afastaram do único
mundo e modo de vida que conheciam, guiados por uma voz que sequer ouviam.
Quanto à sua
viagem ao desconhecido, podemos constatar que ela não é poupada de incertezas.
Ao chegarem à Terra Prometida não a encontraram vazia, mas povoada por uma
civilização superior em número e tecnologia. Gn 12.17. Não haviam ainda se
instalado quando se vêem forçados, pela fome, a migrar para o Egito. A notória
beleza de Sara a leva a se tornar concubina no palácio de Faraó. Assim, como
num prenúncio do Êxodo, pragas são lançadas à casa do Faraó e Sara lhe é
devolvida. O conflito não é entre Faraó e Abraão, e sim entre Abraão e Deus.
Abraão não se julga digno desta paternidade tal como lhe é oferecida e tenta
transferi-la para alguém de cultura e civilização superiores, neste caso um
egípcio. Deus intervém e retoma o controle e faz a promessa pela segunda vez.
Quando
retorna a Canaã, ele e Ló, seu sobrinho, se separam e Abraão assume uma função
diferente de qualquer outra por ele executada. Ele que é apresentado como um
líder espiritual, assume a função de um guerreiro libertador. Neste ínterim,
Abraão já mostra sinais de impaciência, e em Gn 15.1-3 manifesta sua indignação
quanto a demora da promessa dizendo: “de que vale a bênção se eu continuo sem
filho e um escravo será o meu herdeiro.”
Pela terceira vez Deus renova a promessa.
O enfoque do
Gênesis agora é a vida íntima de Abraão, Sara, Agar e Ismael. Do trágico
incidente que condena uma mãe e seu filho a morrerem de sede no deserto, à
intervenção de Deus prometendo também a virtuosa Agar uma grande descendência,
constatamos que mais uma vez o casal tenta ajeitar as promessas de Deus a sua
maneira. Mais uma vez escolhe uma descendência egípcia. Mais uma vez Deus
intervém, repete a promessa pela quarta vez e sela com Abarão uma aliança.
Aliança esta que marcará todo homem judeu dali para frente: a circuncisão. Este
sinal marcava a passagem para a idade adulta ou uma celebração pré-nupcial era
comum, mas não em um homem de 99 anos. Tanto era incomum que Abraão ri desta
ordem Gn 17.12. Por estar com quase 100 anos e Sara com 90, ele mais uma vez
duvida. Pensa ele: se o órgão reprodutor em perfeito estado não foi capaz de
gerar um filho, quanto mais agora que vai sofrer uma mutilação. Quem pode
condenar Abraão por sua risada, sendo esta a quinta vez que Deus lhe prometera
uma descendência.
Antes ainda
do cumprimento da promessa Abraão confronta Deus em uma das mais espetaculares
narrativas de toda a Bíblia. A intercessão pelas cidades de Sodoma e Gomorra.
Em uma flagrante ousadia Abraão questiona Deus com uma série de perguntas das
mais desafiadoras: “Como punirás o justo com o pecador? Não fará justiça o juiz
do Universo?” Esta atitude não se apresentou para Deus com uma ofensa, e sim
motivo de orgulho. Embora possa parecer comum este tipo de intercessão nos dias
de hoje, foi uma demonstração de conduta moral sem precedentes na história.
Mesmo porque Abraão não tinha interesse nenhum com relação aos povos da
campina, onde se situavam as duas cidades. Anteriormente negara-se a
estabelecer qualquer tipo de relação com eles Gn 14.22-24. Deus ficou tão
orgulhoso por ter um filho com tal conduta moral, que ele mesmo se deixou medir
por ela. Gn 16.6 A
Bíblia diz que Abraão creu, e isso lhe foi imputado como justiça. Mas quando
Deus diz que não vai ocultar os acontecimentos de Sodoma e Gomorra a Abraão,
procede desta forma não por reconhecer justiça em Abraão. Por mais de
uma vez Abraão já havia mostrado incredulidade. Deus revela a ele suas
intenções não por ser merecedor, mas por gostar dele. “Eu o escolhi.”
Para
finalizar um dos mais delicados episódios da Bíblia e sem dúvida a maior
questão na vida de Abraão: o sacrifício de Isaac. Em primeiro lugar se torna
muito difícil para nós, com a cultura do século XXl, lidarmos com este fato.
Podemos discuti-lo, mas jamais poderemos sentir pessoalmente o conflito que se
estabelece entre a paternidade e o assassinato. Em segundo lugar verificamos
que o ponto central de todo o episódio continua sendo Abraão, porque, neste
caso, é muito mais fácil ser vítima do que carrasco. Isaac representa a
inocência, e Abraão o pai atormentado entre duas alternativas do bem: o amor ao
seu único filho e a obediência ao deus que concedeu a infinita graça da
paternidade.
Kierkgaard,
em seu livro Temor e Tremor, nos dá algumas versões bastante inspiradas do
fato. Em uma dela diz ele que quando Abraão ergue o cutelo para sacrificar
Isaac diz para ele: “Eu te odeio. Você foi o grande erro da minha vida.
Finalmente eu vou poder reparar este erro.” Mas em seu coração guardava o
seguinte pensamento: “É melhor que ele morra me odiando do que perca sua fé em
Deus” Neste episódio são sintomaticamente narradas as últimas palavras trocadas
entre pai e filho. É bom que se frise que Abraão, na visão de Kierkgaard, chama
para si toda a responsabilidade pelo crime, isentando Deus de qualquer
participação. Uma desafiadora atitude para nós que estamos sempre dizendo: Foi
Deus quem quis.”
Mas por trás
da história existem fatos relevantes. Entre os povos do oriente próximo o
sacrifício de crianças era bastante comum, principalmente do primogênito.
Segundo as suas crenças, o rebento era filho de um deus que exauria suas forças
para concebê-lo. A criança era a ele devolvida para que suas forças se
restabelecessem e ele continuasse a dar filhos ao casal. É mais ou menos quando
nos incitam a dar a Deus aquilo que temos de melhor. Como se Deus exigisse de
nós algo material para provar-mos a nossa fé. Sob todas as formas existe uma
condenação ao ato. Os profetas de Israel foram incansáveis em condenar o
sacrifício de crianças. (Cf. Dt 18.10, II Rs 16.3, 17.17, 21.6, 23.10). Não se perde
tempo condenando aquilo que não existe. Eles eram enfáticos em dizer: Os pagãos
adoram desta forma, nós não. Em Oséias 6:6 atestamos indubitavelmente esta
verdade: “Pois misericórdia quero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus,
mais do que holocaustos.” Muito menos o de crianças inocentes.
De qualquer
ângulo que observarmos veremos que se trata de uma história singular. Depois de
Abraão o mundo nunca mais seria o mesmo. Nada, no mundo de sua época, ou muito
tempo depois, se compara a sua moral sem precedentes. Para nós fica o
questionamento: Como um homem sozinho foi capaz de enfrentar religiões,
culturas e civilizações, apenas pelo chamado de uma voz? Como pode perceber,
aceitar e se guiar por uma lei moral única para todos os homens, quer sejam eles
reis, sacerdotes ou servos? Como pode acreditar em um deus que estranhamente
estabelece a conduta moral diante de outro ser humano como a única forma
correta de ser adorado?
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