Edwin Booth, no papel de Hamlet, 1870 |
Ler Mateus 11.25-27 e I Coríntios 1.26-29
O texto do evangelho do calendário litúrgico designado para hoje, que é Mateus 11.25-27, propõe uma ligação direta com I Coríntios 1.26-29. Em ambos os casos podemos observar que existe contrapontos entre a sabedoria e ignorância, e entre a fraqueza e a força. Assim como o público de Jesus, que era composto de gente de pouca cultura, os membros da igreja de Corinto representavam o que havia de menos importante para a sociedade local. Paulo os define muito bem dizendo que não havia entre eles intelectuais, poderosos ou nobres, transformando-se assim em uma reedição atualizada do povo hebreu que foi liberto por Deus da escravidão egípcia. Ou seja, não é novidade alguma que Deus prefere se manifestar e agir no meio de gente simples e humilde, na expressão menos poética e mais realista destas palavras.
Este é o paradoxo da força do fraco, da sabedoria do louco e da importância do desprezível que Deus soube usar tão bem no transcurso da História. O paradoxo encarnado em Jesus, que diferentemente do que se tem tentado desde 380 A.C., quando Constantino instituiu o Cristianismo como religião oficial do Império Romano, vem rejeitando sistematicamente toda a forma de entronização, realeza e aristocracia de que insistem revesti-lo. Não são poucas as vezes que Jesus rechaçou qualquer tentativa do povo em torná-lo rei de Israel. O meu reino não é deste mundo, se o meu reino fosse deste mundo os meus ministros se empenhariam por mim, foi o que disse textualmente para Pilatos. E foi mais veemente ainda com Pedro: Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão. Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos? Falou isso para relativizar o maior poderio bélico de então: as seis legiões de soldados bem treinados e bem armados que os romanos possuíam naquela época.
Aqui tanto Jesus quanto Paulo respondem a questão filosófica do “ser ou não ser”, não deixando qualquer dúvida quanto a ser fraco em detrimento do ser forte. A fraqueza e o despojamento são características essenciais do cristão, uma vez que o evangelho é essencialmente para os doentes, para os moralmente fracassados e para os amaldiçoados pelo poder. Basta somente que observemos quem são aqueles para quem Jesus destina as bem aventuranças e quem são os que adverte com o inquietantes “ais”. Deus não é de forma alguma um multiplicador de forças, por conta disso, um ditado popular que diz: Deus não escolhe os capacitados, capacita os escolhidos, que tomou relevância de um versículo bíblico, cai inexoravelmente por terra. Deus não capacita seus escolhidos, os envia como são e como estão para que executem a sua a sua divina vontade sem qualquer capacidade ou mérito. Quando estou fraco, aí é que estou forte, disse Paulo em seu próprio nome. Porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza, complementa em nome de Deus, para que não digas jamais no teu coração: A minha força e o poder do meu braço me adquiriram riquezas. (Dt 8.17)
Mas há também outro paradigma a ser derrubado na questão do “ser ou não ser”. Jesus também por mais de uma vez louvou a Deus por este ter se revelado aos ignorantes do sistema enquanto embotava a inteligência dos sábios deste mundo. Embora esta seja uma proposta antiga na história da salvação, ela só começou a ser percebida, denunciada e lamentada por Isaías, ainda antes da queda de Samaria, mais precisamente no ano da morte do rei Uzias. A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim. Então, disse ele: Vai e dize a este povo: Ouvi, ouvi e não entendais; vede, vede, mas não percebais. Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo. Então, disse eu: até quando, Senhor?
É claro que não está se tratando aqui do avanço da ciência ou das conquistas tecnológicas que facilitam e valorizam a vida. Não se trata também do esforço que a razão humana empreende para entender e explicar a sua realidade. Trata-se sim das artimanhas que o mundo que age contra o plano de Deus engendra para justificar e até para intensificar a disparidade entre riqueza e pobreza, força e fraqueza, conhecimento e alienação. Não poucos foram os déspotas da História que se pautaram pelo “ser ou não ser” do conhecimento, sob a premissa maquiavélica do “conhecimento é poder”. É neste sentido que Deus ordena para que Isaías em sua profecia denuncie que o que realmente importa, está sendo cada vez mais ocultado dos olhos do poder e revelado aos despojados e destituídos desse poder.
Um hino muito conhecido, e cuja letra recebeu nossa língua várias versões, uma deles delas diz o seguinte:
Da vaidade fiéis servos,
Lutam por fazer nos seus;
Muitas vezes nos assaltam
Os modernos fariseus.
Mas se alguém procura ver-nos
Sem a graça do bom Deus,
Vencendo vem Jesus!
Lutam por fazer nos seus;
Muitas vezes nos assaltam
Os modernos fariseus.
Mas se alguém procura ver-nos
Sem a graça do bom Deus,
Vencendo vem Jesus!
O ser cristão é ser nova criação para definitivamente inverter e subverter os valores da criação antiga, onde a força é usada senão para erguer o fraco e a sabedoria, apenas para dar sentido à vida. Talvez o momento decisivo de Shakespeare em Hamlet, seja onde ele intui que todo esforço para ser se perde num vazio ativista e inconsequente, e desta forma conclui seu raciocínio:
O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação.
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