Ausência de Deus

Retorno da Arca da Aliança, Gustave Doré

Quanto a mim, dizia eu na minha prosperidade: jamais serei abalado. Tu, Senhor, por teu favor fizeste permanecer forte a minha montanha; apenas voltaste o rosto, fiquei logo conturbado. Leia Salmos 30

Talvez, porque fosse a experiência mais trágica das suas vidas, o povo que escreveu a Bíblia quase nunca faz alusão à amargura do que vem a ser a experiência de ausência da Deus. Umas poucas palavras na narrativa da criação falam do caos que era o nosso mundo quando Deus ainda não havia lhe concedido a luz da sua presença. Por sinal, em um versículo cuja tradução para o português não retrata exatamente a dramaticidade da ocasião. Nas Bíblias que se basearam na tradução do padre João Ferreira de Almeida, a mais comum entre católicos e protestantes, diz que o Espírito de Deus pairava sobre as águas Gênesis 1.2, dando-nos uma ideia de que este Espírito era como uma borboleta passeando num campo tranquilo e florido. Mas o texto no hebraico diz que esse mesmo Espírito tormentava as águas. O verbo merareft anuncia a plena revolta de Deus com a formatação de um universo sem forma e vazio.

Na sua profecia, Isaías também fala de um local assim, onde, pela ausência de Deus, novamente se delineia condições ambientais muito negativas e adversas: Os gatos do mato e outros animais selvagens morarão ali; demônios chamarão uns aos outros, e ali a bruxa do deserto encontrará um lugar para descansar. Isaías 34.14 

O nosso texto base não fala de um contexto semelhante, mas de situações onde Deus, outrora presente, fez-se propositadamente ausente. Fala de vidas que eram cômodas e tranquilas e que rapidamente se transtornaram devido ao fato de Deus ter momentaneamente retirado da presença delas o seu Espírito. Não é sem motivo que apenas Jeremias expõe a grande vergonha nacional que representava para os judeus antigos a cidade de Silo. Silo se transformou na sede do clamor dos injustiçados, e não naquilo que se esperava: Um lugar separado e santificado para adoração a Deus: Mas ide agora ao meu lugar que estava em Siló, onde, no princípio, fiz habitar o meu nome, e vede o que lhe fiz, por causa da maldade do meu povo de Israel. Jeremias 7.12

Esta foi a mais contraditória experiência vivida pelo salmista: imaginar que todas as coisas estavam bem, simplesmente pelo fato da sua situação momentânea indicar paz e prosperidade. Bastou tão somente Deus voltar o seu rosto em outra direção, para que seu mundo se desmoronasse. Para que ele entendesse que a sua segurança não estava nos muitos bens que possuía e nem na conformidade de uma situação que anunciava a paz, mas a prática efetiva da justiça. Posso lhes assegurar também que algo assim me ocorreu, e lhes digo que não pode haver nada mais assustador.

É desesperador ver que o mais alarmante sinal da inconformidade de Deus com uma situação é justamente aquele que a igreja e a maioria dos cristãos de hoje mais desejam para si: paz e prosperidade em um mundo de injustiças. Não há como não entender que todas as bem aventuranças proferidas por Jesus destinavam-se àqueles que viviam fora desse contexto e longe daquilo que nós tanto desejamos e esperamos um dia viver. A Bíblia não pode ser mais clara quando dirige todos os ais àqueles que gozavam plenamente desta falsa, porém, tentadora bênção. O salmista nos diz que Deus está presente e que dá o seu aval quando a justiça é praticada, mesmo que todas as circunstâncias o neguem. Como bem diz o Salmo 27 para a nossa reflexão: Ainda que um exército se acampe contra mim, não se atemorizará o meu coração; e, se estourar contra mim a guerra, ainda assim terei confiança.

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