Deus ilumina II

Pietá, Michelangelo em 1499
Por várias vezes neste blog eu falei da tradição como sendo algo ruim, mas não é essa a ideia que eu tenho dela. Talvez devesse usar a palavra convenção para focar melhor o alvo da minha crítica. Mas quero deixar claro também que tradição boa é aquela que a igreja acumulou através dos séculos e que a fez ter o seu papel importante na história secular, bem como na história da salvação. A tradição dos outros é boa para eles, e o que é novo ainda precisa ser depurado para que vire tradição de fato. Sobre os malabarismos e coreografias neopentecostais que foram introduzidos nas igrejas históricas, eu ouvi uma anedota que ilustra bem o que isso é.

O presidente dos EUA convidou Bill, um amigo de infância para um jantar na Casa Branca. Mas este amigo pouco conhecia de etiqueta e protocolo. Para não passar vergonha, pediu conselhos a alguém que entendia um pouco mais do que ele. Faça tudo que o presidente fizer. Disse o conselheiro. Ainda que meio atabalhoado, conseguiu chegar ao fim do jantar ileso. Foi então que, na sala ao lado, foi servido um café com creme. O presidente pegou um pires e despejou café nele. O convidado fez igual. Colocou um pouco de chantilly em cima, Bill colocou também. Com uma colher o presidente fez uma rápida mistura, o que Bill imitou com precisão. Quando ia levar o pires à boca, Bill percebeu que o presidente havia se inclinado para dar o pires ao gato que estava debaixo da poltrona. Cada igreja tem a sua tradição e deve ater-se a ela, por que já provou ter dado certo. Assim fazendo corremos o risco de ter no rosto purpurinas brilhantes, que apenas refletem a luz que vem de fora.

Chegamos ao segundo e derradeiro ponto: o rosto de Moisés. Quem viu o rosto de Moisés, como fizeram aqueles que nos legaram a tradição oral do texto, poderia muito bem dizer que ele realmente tinha falado com Deus e que estivera mesmo na presença de Deus. Volto a perguntar: O que as outras pessoas podem entender a partir da leitura dos nossos rostos? O que eles refletem? Elas podem ver o cansaço, porque a vida do cristão é quase sempre estressante e problemática. Podem ver a indignação, porque estamos constantemente fazendo o que não queremos e não fazemos o que queremos, como disse Paulo. Podem ver o orgulho e a arrogância, porque invariavelmente nos sentimos melhores e mais justos do que todos em volta de nós. Mas, por outro lado, podem ver também a alegria inexplicável que carregamos secretamente conosco. Podem ver a ausência de medo das superstições que apavoram as demais pessoas. Podem ver um rosto que, apesar de passar pelas mesmas dificuldades que o mundo passa, reflete uma paz interior totalmente indizível. O que os outros veem quando olham para nós? Quando os israelitas viram o rosto de Moisés, não tiveram dúvidas de que Deus estava com ele. Como seria bom se os outros nos olhassem e pensassem: Uau! Esse tem um rosto diferente! Esse rosto tem a marca registrada de Deus!

Quando li esta passagem na Bíblia tive um encontro com irmãos e irmãs que já não estão mais entre nós. Aquelas pessoas que seguramente teriam mais de cem anos se fossem vivas. Aquelas pessoas que me ensinaram o pouco que sei das Escrituras. Posso me lembrar vagamente dos seus cabelos brancos, mas não me lembro se elas tinham rugas. Posso me lembrar das vozes embargadas, mas não me lembro de vê-las com passos vacilantes. Não tenho como não me lembrar das meninas, um grupo de senhoras, todas com mais de oitenta anos, que se sentavam bem na frente. Minha mãe e minha avó estavam dentre elas. Lembro-me bem que certa vez um “pastô” levou seu grupo de profetizas para que a igreja visse o que era ação do Espírito Santo. Na ocasião eu tive oportunidade de dizer-lhe dentro do templo: Nestes primeiros quatro bancos tem mais ação do Espírito Santo do que em toda a sua igreja.

Na basílica de São Pedro, no Vaticano, tem uma escultura de Michelangelo que foi muito questionada pelos religiosos da sua época. É chamada de Pietá ou Nossa Senhora das Dores, onde o artista representou Cristo morto no colo de sua mãe. Os críticos nada observaram sobre a genialidade do autor, nem da sua inspiração inusitada em captar aquele momento, muito menos da precisão das formas humanas da escultura. O que mais criticaram foi a juventude expressada no rosto de Maria que não condizia com a de uma mãe que tinha um filho da idade de Jesus. Michelangelo disse rebatendo todas as críticas: A mãe de Jesus nunca envelhece.

O que as pessoas podem ver no nosso rosto? Deus iluminando ou algo mais?

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