As águas que determinam

Relevo grego de Esculápio e Higeia
Um dos elementos marcantes nas narrativas da criação são as águas. A palavra hashamayin, que no hebraico significa águas, não está no plural nem no singular, está simplesmente em um número não reconhecido pela nossa língua, embora frequentemente o usemos, tanto para as águas quanto para os ares ou as terras. Na primeira narrativa, o excesso e a qualidade das águas impediam de alguma forma o processo criativo. Deus teve que separar as águas boas, que servem para beber e irrigar o solo, e armazená-las acima do firmamento, para que caíssem sob a forma de chuva. Teve também que concentrar as águas salgadas e salobras em determinados lugares, para que aparecesse a porção seca, a quem chamou de terra, e não de terras.

Já a segunda narrativa, que segundo consenso dos estudiosos começa na segunda parte do versículo 4 do capítulo 2 do Gênesis, é marcada pela total ausência das águas que impediam a criação. Deus, segundo este narrador, teve que primeiro fazer chover sobre a terra e a partir daí iniciar a criação. Logicamente que cada uma dessas narrativas foi gerada em um ambiente específico, cujas circunstâncias conduziram a inspiração do escritor sacro.

As águas, contudo, continuam presentes desta mesma forma em toda a história da salvação, ora concorrendo para o bem, ora servindo como obstáculo. É interessante que a definição do que designa o que é água boa ou má é nossa. O escritor apenas definiu-as como as águas que ficavam acima e águas que ficavam abaixo do firmamento. Com Jesus não foi diferente, as águas lhe serviram para vários propósitos, até mesmo para se prestaram para ser matéria prima básica de um vinho delicioso. Ainda assim, existe um episódio envolvendo as águas, em que elas se prestaram para aguçar a credulidade pagã que estava enraizada no povo de Israel. Tão enraizada que nem mesmo o excelente teólogo, o evangelista João, percebeu a sutil presença do paganismo na sua narrativa da cura que Jesus realizou à beira do tanque de Betesda.

Sabe-se que hoje, este tanque foi ampliado pelos romanos para ser dedicado a Esculápio, Deus greco-romano da medicina. Mesmo que não estivesse presente no panteão, era um dos mais adorados deuses de então, e a sua iniciativa no processo de cura se dava justamente para aquele que mergulhasse primeiro no tanque, quando as águas eram revolvidas por ele. Um processo de cura eminentemente pagão, que João atribuiu à ação de um anjo do Senhor.

Mas Jesus veio em boa hora acabar com este engano. Ele mostrou para aquele homem enfermo que a cura não estava nas águas, não estava na ligeireza, na manifestação de um Deus grego ou mesmo de um anjo. A cura está na obediência à Palavra que sai da boca de seu Pai. Levanta-te, toma o teu leito e anda. Jesus mostrou também que a cura não depende apenas de uma ação imediata, aquilo que comumente chamamos de milagre. Este pode sim desencadear o processo de cura, mas a cura é muito mais do que a simples restauração da saúde ou da integridade física. A cura serve também como um alerta para que se viva uma vida diferente, para que não se viva mais seguindo costumes pagãos ou cometendo os mesmos erros da vida que se vivia antes dela. A cura é apenas um sinal de que algo novo e grandioso está para acontecer. Paulo, mais tarde, vai tomar este princípio que ensinado por Jesus àquele enfermo, e fazer um alerta mais amplo e mais abrangente. Em I Coríntios 10.12 ele diz: Portanto, aquele que pensa que está de pé é melhor ter cuidado para não cair. Aquele que pensa que foi curado por causa disso ou daquilo, esteja atento para que esta cura não venha a causar um mal maior do que a doença que ela combateu.

Finalmente Jesus mostrou que a cura não está ligada aos princípios da religião, nem mesmo os mais básicos. Quando ele curou o enfermo no sábado, não somente infringindo a lei, mas aliciando o enfermo a que também o fizesse, quis dizer claramente que os milagres de Deus não estão condicionados a qualquer tipo de estrutura. Jesus cura no sábado, cura no templo pagão, cura quem já não tinha mais em ser curado e cura infringindo a lei. A Bíblia nos diz que ele curou de modos inusitados e em situações inéditas. Disse também que ele curou com água, fosse ela boa ou ruim, não importava, mas em momento algum a Bíblia diz que ele curou com dia e hora e local determinados. 

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